C.A.S. - COLETIVO DOS ARTISTAS SOCIALISTAS
Dinheiro Público para uma Arte Livre e Verdadeira!
EM DEFESA D@S TRABALHADOR@S DA ARTE
Nós queremos “a independência da arte para a revolução e a revolução para a libertação definitiva da arte!” Essas são as palavras finais do Manifesto POR UMA ARTE REVOLUCIONARIA INDEPENDENTE.
Nós, hoje, não vivemos sob a ameaça de uma guerra mundial, como na época em que o Manifesto foi escrito, entretanto a arte sofre uma ameaça tão ou mais grave; de ser manipulada pelo capital, de desaparecer como manifestação livre do pensamento e das emoções humanas. Por isso reivindicamos o Manifesto escrito por Breton e Trotsky em 1938.
Pressionada pelas leis do mercado, a arte tornou-se um produto e não mais o fruto das necessidades e inquietações humanas. Pressionado pelas imposições da indústria cultural, o artista virou um vassalo do capital. Ele depende das benesses do Estado, dos Bancos e do grande capital, para poder trabalhar. O rumo da arte brasileira esta nos departamentos de marketing dos bancos e das empresas.
Os profissionais da cultura não podem mais consentir com essa degradação.
A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades e interesses do homem e da humanidade de hoje, tem de ser revolucionaria, tem de aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade. Para isso, e preciso ao mesmo tempo para que todos tenham emprego, moradia, acesso a educação e saúde de boa qualidade, enfim, lutar pela emancipação da classe trabalhadora.
Temos que lutar para que o Estado cumpra o seu papel. Sem exercer qualquer tipo de comando sobre a criação artística e intelectual da sociedade, o Estado deve usar os impostos pagos pela população para construir as condições econômicas e politicas para o pleno desenvolvimento dos potenciais artísticos e culturais da população, respeitando sua diversidade quer regional, racial, sexual, politica e outras.
Na época atual, caracterizada pela violência capitalista, o artista está ameaçado da privação do direito de viver e continuar sua obra pelo bloqueio de todos os meios de difusão e pela falta absoluta de incentivos financeiros por parte do Estado. E, quando chegam a receber, não passam de migalhas. As parcas leis de incentivo existentes são como tábuas de salvação as quais os artistas se agarram desesperadamente, como única fonte de recursos para sua arte.
Não queremos esmolas por nosso trabalho. Não queremos mais pedir de joelhos que subvencionem a nossa arte. Milhares de artistas se encontram isolados, cuja voz é coberta pela falta absoluta de uma política clara de incentivo.
Toda tendência progressiva na arte sofre dois destinos: ou é difamada pelo capitalismo como uma degenerescência ou então absorvida, num vertiginoso e infernal processo antropofágico pelo sistema capitalista, rapidamente transformando-o em mercadoria.
Temos que lutar contra isso. O verdadeiro artista tem de estar onde o povo está. Devemos apoiar as lutas que os trabalhadores e povos travam em todo o mundo por mais liberdade, por melhores condições de vida, contra o imperialismo, essas lutas vão ao encontro da emancipação humana, tão necessárias às criações artísticas. As revoluções que hoje sacodem os países árabes e norte da África, são exemplos a serem seguidos por todos os povos oprimidos e explorados. Essas lutas são nossas também, porque não haverá uma arte livre enquanto existir um único povo oprimido e explorado.
O QUE DEFENDEMOS:
- a cultura deve ser tratada como um serviço público, como a saúde e a educação;
- a cultura e todas as artes devem ser financiadas pelo Estado de forma ampla;
- todos os equipamentos culturais – museus, centros culturais, teatros, galerias de arte, etc.
Devem passar para as mãos do Estado, sem qualquer tipo de indenização;
- os equipamentos culturais, devem ser administrados pelos funcionários, artistas e trabalhadores da cultura, em conjunto com a comunidade local.
- todas as escolas públicas devem funcionar como centros de cultura completos;
- todas as formas de organização independente dos artistas e trabalhadores da arte e cultura;
- o fim de todo tipo de exploração (comercial e ideológica) do trabalho artístico e intelectual;
- o fim dos monopólios privados de produção e exploração da arte e da cultura;
- os grupos amadores e independentes, livrando-os da pressão econômica, para que possam se desenvolver livremente.
- o mais profundo internacionalismo na arte e da mais estreita relação entre os artistas de todo o mundo.
Quem somos: um coletivo aberto a todos os artistas e trabalhadores da cultura que entendem que no capitalismo é impossível uma arte livre e acessível a todos. Nossas reuniões são quinzenais. Tod@ são bem vind@s!!!!
www.coletivodeartistassocialistas.blogspot.com
Mar/12
Dinheiro Público para uma Arte Livre e Verdadeira!
Perdemos a paciência, ocupamos a Funarte, já enviamos mil vezes nossas propostas mas até agora o governo Dilma finge-se de morto. Esse total descaso para com a Arte é próprio de um governo preocupado em salvar os grandes bancos e empresas da enorme crise econômica em que estão metidos. O descaso pela Arte é próprio de quem só se preocupa em salvar os lucros do grande capital, porque a Arte verdadeira é avessa ao lucro e ao capital. Um governo preocupado em defender seus privilégios, políticos que só legislam em causa própria, aumentando seus já polpudos salários, vivendo em apartamentos de luxo em Brasília, viagens internacionais em hotéis cinco estrelas... tudo às custas do dinheiro público. Um governo assim jamais terá verba para a Arte, ou apenas algumas migalhas.
Não apenas nós, os artistas, os trabalhadores da cultura, perdemos a paciência, e nos sentimos enojados com o governo. Todos os trabalhadores brasileiros e também a juventude estudantil... ninguém mais tem paciência. Já não suportamos mais as mentiras deste e dos governos anteriores, sobre a falta de dinheiro para as nossas necessidades básicas. Nós pagamos impostos cada vez mais altos, e para onde vai todo esse dinheiro? Para melhorar os hospitais públicos? Não. Para aumentar as vagas nas escolas públicas e pagar bem os professores? Não. Para construir moradias dignas para o nosso povo? Não. Para que os grupos de teatro possam crescer e se multiplicar? Não. Esse dinheiro vai para o bolso dos políticos, para pagar os favores que devem aos poderosos, para salvar os bancos e as empresas das crises que eles mesmos criaram.
E não só aqui no Brasil estamos perdendo a paciência. Em todo o mundo. Na Europa, o povo está nas ruas. Na Grécia, estão enfrentando as bombas de gás lacrimogêneo. No mundo árabe, uma das regiões mais ricas do mundo em petróleo, contraditoriamente o povo já não suporta mais tanta fome, miséria e opressão. Para onde vai todo o dinheiro do petróleo? Para acabar com a fome? Não. Para construir escolas, hospitais, estradas? Não. Para a arte e a Cultura? Não. O dinheiro vai para o bolso das grandes petroleiras e para as ditaduras que dominam esses países a ferro e fogo. O dinheiro vai para as grandes potências imperialistas jogarem bombas sobre os povos que lutam.
Esse não é o mundo no qual a arte e a cultura poderão se desenvolver. Num mundo onde os homens não são livres, não pode haver uma arte livre.
Nós não queremos ser artistas privilegiados, queremos que todos os seres humanos sejam artistas, desenvolvam seu talento. Mas num mundo onde impera a fome, a opressão, a violência, o desprezo pela vida humana, a arte não tem espaço.
Por isso, nossa causa é a causa da emancipação da humanidade em relação ao capital. E para que essa causa, a causa que dá sentido às nossas vidas e à nossa arte, não morra aqui, é preciso ir até o fim em nossa luta. Mas temos de ser claros: hoje a classe trabalhadora enfrenta o desafio de retomar a estratégia da revolução socialista mundial para derrotar este sistema e terminar para sempre com a exploração e o flagelo das guerras e das crises econômicas. As lutas espontâneas são importantes, mas sem uma organização combativa, que aponte uma perspectiva para os trabalhadores, não conseguiremos avançar.
Os trabalhadores vêm dando grandes passos nesse sentido. A criação da CSP-Conlutas, em alternativa à CUT oficialista, foi uma vitória. Entre os artistas, nós estamos propondo a construção de uma alternativa também, o Coletivo de Artistas Socialistas (CAS), aberto a todos aqueles que concordam com a necessidade do socialismo. Chamamos a todos os artistas, a todos os trabalhadores da cultura que já perderam a paciência e querem mudar o mundo, a se somarem a nós nesse esforço de construir o CAS. De forma democrática, ampla, mas com muita clareza sobre nossos objetivos: por uma arte livre, independente e revolucionária.
Viva a luta dos trabalhadores da arte!
CAS – Coletivo de Artistas Socialistas
São Paulo, agosto de 2011
Pega Ladrão! Devolvam o Teatro Municipal!
Cecília Toledo
O Teatro Municipal de São Paulo acaba de ser roubado da população. O prefeito Kassab entregou esse patrimônio histórico da cidade, que está completando 100 anos, ao capital privado. Isso significa que de hoje em diante não teremos mais Teatro Municipal. Aquele prédio maravilhoso, que fica no Viaduto do Chá, já não é mais um lugar público, já não é mais “municipal”. Agora é propriedade privada. Aquelas escadarias onde tantos artistas famosos pisaram rumo ao palco em estilo italiano, com uma acústica perfeita, poltronas revestidas de veludo vermelho, agora perderam seu sentido. Essas mesmas escadarias, onde tanta gente já sentou para descansar um pouco da correria da cidade, onde tantos encontros foram marcados, agora são escadarias como outras quaisquer. Essas escadarias onde tantos trabalhadores já protestaram; esses degraus onde os próprios artistas nos anos 70 transformaram em palanque para lutar contra a censura, agora têm um dono. E se você nunca entrou no Teatro Municipal, nunca assistiu a um espetáculo naquela platéia tão suntuosa, nunca sentou naquelas poltronas revestidas de veludo vermelho, nunca andou por aqueles corredores habitados por tantos fantasmas, agora sim que perdeu de vez a chance. Se quando era público, o Teatro Municipal vivia largado ou cobrava caro os ingressos, imagine agora, que virou teatro privado? Será um petisco para poucos, um privilégio da elite, um luxo para os escolhidos. E nós não estamos entre eles.
Um palco histórico
O Teatro Municipal, do qual a população de São Paulo tanto se orgulha, começou a ser construído em 1903. Com projeto de Ramos de Azevedo e arquitetura de estilo neoclássico, foi inaugurado em 1911. Já recebeu em seu palco italiano (tipo de palco aberto apenas na frente, com boca de cena) grandes companhias de balé e teatro, entre elas a Comédia Francesa, que no início do século XX mostrou ao Brasil o que era o teatro moderno, sem falar das orquestras do mundo inteiro que passaram por lá. O Teatro Municipal também se transformou num patrimônio histórico das artes brasileiras, em 1981, porque foi naquele palco que ocorreu a Semana de Arte Moderna de 1922, considerada o marco do modernismo brasileiro.
Em 2008 o teatro entrou em reforma, e a prefeitura pagou, com dinheiro público, 30 milhões de reais para restaurar o edifício. Além de recuperar a pintura original do Municipal, a obra incluiu a instalação de novos equipamentos de som e cenografia.
Agora que tudo está pronto, Kassab entrega o teatro à iniciativa privada, que não terá de gastar um tostão, apenas embolsar os lucros com a gestão do teatro. Inclusive não vão nem de contratar novos funcionários e muito menos pagar salário. Os mesmos que já trabalham ali vão continuar em seus empregos, com salários pagos pela... Prefeitura.
Privatização da cultura
A privatização do Teatro Municipal é o primeiro passo de um projeto mais audacioso da burguesia paulistana de ter sob seu controle todos os equipamentos culturais da cidade. Com a anuência do governo Dilma e, claro, de sua Ministra da Cultura, Ana de Holanda. A tarefa de salvar o Municipal, símbolo maior da rapina que o capital sobre a cultura brasileira, é dos artistas e do conjunto da classe trabalhadora.
É preciso lutar para salvar o Municipal, porque depois dele, outros virão, e a cultura será totalmente tomada pelas empresas privadas e passará a ser gerenciada da mesma forma que um banco ou uma fábrica: para obter lucro. As promessas de Lula de popularização da cultura, de “arte para todos”, de respeito e valorização do artista, são como leite derramado que se escorre pelas escadarias do Municipal rumo aos bueiros da Praça Ramos de Azevedo. A liberdade artística morre ali mesmo, porque quem compra um Teatro escolhe os projetos que vão ocupar o palco. E a presidenta Dilma, que tanto discursa em prol da felicidade do povo brasileiro, se cala diante de tanta incúria.
O projeto de lei do Kassab, aprovado pela Câmara Municipal, transforma o Teatro Municipal em uma fundação que poderá contratar uma OS (Organização Social) para gerenciar as atividades artísticas. Isso significa que um banco ou uma empresa qualquer poderá ser chamada para patrocinar as temporadas de balé, teatro ou música. E, claro, só terão patrocínio aqueles artistas cuja obra seja do agrado do patrocinador. Afinal, quem paga escolhe a música!
A Política Cultural do Governo Dilma: Democratização ou Privatização?"
Sobre a Política Cultural do Governo de Frente Popular
Cecília Toledo
A nova Ministra da Cultura acaba de tomar posse e aprovar o Procultura, um plano geral do governo Dilma para todo o país e todas as áreas da Cultura. Aqui analisamos mais detidamente o Plano Setorial de Teatro, cujos eixos norteiam igualmente os demais setores. O que primeiro que se nota é caráter frente-populista do Plano, fruto que é de um governo de frente popular.
O que caracteriza um governo de frente popular?
Um governo de frente popular caracteriza-se por ser um organismo de colaboração de classes, no qual um setor do proletariado, representado por um ou mais partidos, e um setor da burguesia (mesmo que seja minoritário) se unem para gerir o Estado (ou seja, os negócios da burguesia). Em geral é um governo formado em uma época de crise, quando a burguesia não consegue governar sozinha e se utiliza de um partido do proletariado para poder implementar suas políticas. Apesar de o proletariado depositar grandes ilusões, esse não é um governo seu, mas um governo burguês, que aplica políticas capitalistas de exploração da classe trabalhadora. A presença do partido dos trabalhadores no governo representa uma traição à classe trabalhadora, apesar de parecer que é uma vitória e que está governando sozinho.
Esse é o governo que chegou ao Planalto pelas mãos de Lula em 2002 e agora tem sua continuidade com Dilma. As políticas de um governo de frente popular são de interesse da burguesia. Para poder se manter no poder, o governo atira algumas migalhas para a classe trabalhadora e o povo pobre, como é o caso das políticas compensatórias (bolsa-família, Fome Zero etc).
Na área da Cultura, apesar das grandes contradições, ocorre o mesmo. Pode-se dizer que é uma “política cultural frente-populista”, que joga migalhas para os artistas mas está assentada na parceria público-privada. É uma política no geral bem ampla e pouco concreta, mas que na essência transforma o Estado em um mediador entre o capital e a arte, entre os empresários e os artistas. Lula abriu o caminho para convencer a sociedade de que essa era a solução para a cultura, e ganhou quase toda a classe artística para seu projeto. Dilma tentará a todo custo dar continuidade a ele.
Plano Setorial de Teatro, um exemplo de política de frente popular
O Plano Setorial de Teatro é um exemplo dessa política. Elaborado pela Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, foi aprovado em dezembro de 2010. Trata-se de uma lista de boas intenções que só sairá do papel se a parceria público-privada ocorrer. O Estado entra com o dinheiro público, por meio das benesses da renúncia fiscal. Os empresários - bancos, empresas nacionais e estrangeiras, grandes Fundações privadas – ficam com a “mais-valia”.
Na definição marxista, “mais-valia” é a parte do trabalho realizado pelo operário e não pago pelo patrão. O operário recebe um salário X que cobre apenas uma parte do trabalho que realiza; tudo o mais que produz além desse horário não é pago. A mais-valia não ocorre apenas no trabalho fabril. Na arte e na cultura, ela também ocorre, e se manifesta quando o empresário “compra” um espetáculo (teatral, musical etc) para o qual não investiu um tostão. É um preço simbólico, porque de tudo o que foi gasto na produção do espetáculo, apenas uma pequena parte é paga. Todo o restante, incluindo o tempo dos artistas e sua capacidade criativa (que não tem preço), além de tudo o que aquele espetáculo rende para o empresário em matéria de retorno financeiro e institucional, é a mais-valia que vai para o bolso do empresário.
Essa é, portanto, uma relação de exploração. O que o Estado burguês faz é intermediar essa relação e a parceria público-privada como forma velada de privatização do papel do Estado tem como centro o mecanismo de renúncia fiscal. A renúncia fiscal significa “não pagar impostos”. Qualquer empresa que queira instalar-se aqui tem isenção de impostos caso faça algum tipo de “investimento social” (a chamada contrapartida social). O melhor exemplo são as zonas francas. A empresa se instala e coloca iluminação pública nas ruas próximas à planta, urbaniza o bairro, coloca algum tipo de transporte e tudo isso é abatido dos impostos devidos. Claro que todos esses “benefícios” servem em última instância à própria empresa, mas passam a imagem de que estão auxiliando a população local.
No caso da cultura, a renúncia fiscal significa a captação de recursos por parte das empresas privadas diretamente dos cofres públicos. Por meio do Procultura, o governo de frente popular segue o modelo das Câmaras Setoriais implantadas em 2005 em todo o país. No caso das artes, segundo o Minc, “essas Câmaras devem ser espaços permanentes de diálogo entre o Estado, a Sociedade e o Setor privado na elaboração de políticas e diretrizes para o Plano Nacional de Cultura”. Nesses “espaços permanentes de diálogo” só não conseguimos encontrar o lugar do setor privado, porque o Estado entra com a verba e a Sociedade entra com os artistas, quê papel cumpre o empresário? A rigor, nenhum, mas de fato, é ele quem dá as cartas nesse jogo.
Segundo o projeto, “instaura-se um novo modelo de relação entre Estado e Sociedade Civil, que passaram a dialogar e pactuar sobre o fazer teatral no país”. Diz o Plano: “Temos a nosso favor a constante consulta às nossas bases nos estados e diversas entidades às quais estamos todos ligados: movimentos de base locais, organizações das companhias, grupos, artistas e produtores independentes, diversas redes organizadas de teatro e, principalmente, representações na Pré-conferência Setorial e na Conferência Nacional, formando uma extensa rede de consulta”.
De fato, um diálogo entre o Estado (que deveria subvencionar a arte) e a Sociedade Civil (artistas e público) não resolve nada, porque os empresários estão metidos nesse “diálogo” e são os que direcionam as verbas, portanto, os que verdadeiramente decidem. E essa “extensa rede de consulta” criada pelo Estado junto com a Sociedade Civil funciona, na verdade, como assessora dos empresários para assuntos artísticos, sem ganhar nada por isso. São profissionais na sua maioria formados em escolas públicas, sem qualquer dispêndio por parte dos empresários, ou então artistas de notório saber, que ingenuamente servem de “assessores” dos empresários para assuntos culturais na ilusão de estarem contribuindo para a democratização da arte. Conclusão: os empresários não investem nada na criação dessa “rede de consulta” e se beneficiam dela amplamente.
Parceria Público-Privada (PPP) e renúncia fiscal, dois mecanismos de interesse do capital privado
O Plano Setorial de Teatro tem cinco capítulos de boas intenções. Mas numa leitura atenta, percebe-se que não é adequado à realidade brasileira, privilegia a quantidade e não a qualidade e não diz de onde vai sair o dinheiro para a concretização de todas as medidas propostas. Já na Introdução, diz a que veio: fomentar a política de parceria público-privada, o que já sabemos o que significa. A Introdução já desmente do primeiro capítulo, dedicado ao papel do Estado. A este caberia apenas frases genéricas, constatações destinadas a agradar a gregos e troianos, do tipo “fortalecer a função do Estado na institucionalização das políticas culturais para o teatro”, “intensificar o planejamento de programas e ações voltadas ao campo teatral” e “consolidar a execução de políticas públicas para o teatro”. Tudo o que não está sendo feito hoje ou não foi feito desde que Lula tomou posse, passará a ser feito agora, de acordo com o Plano. Incentivar o teatro, apoiar os grupos, promover estudos, enfim, tudo o que a classe teatral vem exigindo há anos. Mas o curioso é que não se informa o essencial: de onde vai sair o dinheiro para tudo isso, e quem vai realizar? E por que não informa? Porque não pode dizer que o dinheiro vai sair do bolso do próprio trabalhador, em forma de impostos que ele paga para ter serviços públicos de qualidade e gratuitos, inclusive o acesso à cultura. No item 1.2.1 diz que pretende criar políticas de fomento para manutenção de espaços públicos e privados para as atividades cênicas, o que significa que o Estado vai financiar (com dinheiro público) os espaços privados, que depois cobram ingressos da população. Ou seja, os empresários ganham duas vezes: não pagam impostos e ainda por cima têm seus espaços (teatros, casas de show, cinemas etc) mantidos com dinheiro público.
O Plano é tão distante da realidade que desmente o que vem sendo feito até agora. Diz, por exemplo, que pretende incentivar o uso gratuito de praças e ruas para o teatro, como se o MinC não soubesse que hoje os grupos estão sendo brutalmente reprimidos pela polícia, espancados e expulsos das ruas e praças. Se o Plano pretende mesmo incentivar o uso desses espaços, o governo deveria sair imediata e intransigentemente em defesa do teatro de rua, impedindo que a polícia toque um dedo sequer nos grupos. Do contrário, é puro discurso.
Cultura como negócio, arte como concorrência
Depois de uma lista enorme de outras boas intenções - estimular a oferta de cursos técnicos e criar parcerias entre a Funarte e as entidades privadas para fazer treinamento de atores - o Plano deixa claro seu caráter privatista e seu objetivo de transformar a arte em negócio, em empreendimento capitalista, e não um serviço público que deva obrigatoriamente ser garantido pelo Estado. A parceria com as entidades privadas deverá treinar os artistas em gestão cultural, bem como estimular o empreendedorismo. Isso significa que os artistas devem passar a ser “homens de negócio”, que saibam “se virar” para continuar fazendo arte, que se transformem em empresas lucrativas, que corram atrás de patrocínio, que disputem o mercado com outras empresas, que entrem na concorrência encarniçada do mundo capitalista.
Essa é exatamente a situação que vivemos hoje, e o resultado é que nessa briga pelo mercado apenas uns poucos grupos conseguem sair adiante, às custas de se transformarem em empresas e seguirem os padrões mercadológicos. A grande maioria dos artistas vive à míngua, com péssimos rendimentos, sem apoio dos serviços públicos e total insegurança no trabalho.
Quando criticamos o fato de que o plano privilegia a quantidade e não a qualidade, dizemos que passa a idéia de que o governo quer ampliar ao máximo, para todo o país, para milhões e milhões de pessoas, o acesso à arte. Em sã consciência, sabemos que dizer isso é o mesmo que dizer que ninguém terá acesso à arte. Se o foco do governo Dilma – como ela não cansa de afirmar – é erradicar a pobreza, como o MinC solta um Plano de Cultura que promete acesso à arte para todos? Isso significaria injeção massiva de investimentos em Cultura e não na erradicação da fome! Por outro lado, Cultura para todos exige algo que a antecede, ou seja, Educação para todos. O que também significaria redução do orçamento para a Cultura.
Por outro lado, Cultura para todos significa que a qualidade dos projetos artísticos irá para as calendas gregas, sem esquecer que o governo abre para todos a possibilidade de acesso à arte, enquanto deixa os grupos que já existem à míngua. Por que não fazer um Plano mais focado em “salvar” os artistas que já estão na estrada, batalhando por verba para não sumir do mapa, e uma vez consolidada minimamente uma base de trabalho teatral, poder criar uma política conseqüente que garanta um maior o acesso à arte e à cultura?
Frente de todos os partidos para “defender” a Cultura
Para não deixar dúvida sobre o caráter frente-populista de sua política, o governo acaba de dar seu aval a uma auto-intitulada Frente Mista de Cultura, cujo objetivo será o de defender a aplicação das políticas culturais. É uma grande frente popular reunindo 250 parlamentares de todos os partidos burgueses (PV, PPS, PT, PMDB, PP, PSDB, DEM, PSB), com a presença do Psol, que deverá “acompanhar a aplicação dos projetos e programas culturais do governo”. A presidente da Frente é Jandira Feghali (PCdoB) e o vice, Cristovan Buarque (PDT). Roberto Requião do PMDB do Paraná integra a Comissão como Presidente da Comissão de Educação e Cultura do Senado, e nessa Frente a cidade de São Paulo será representada pelo deputado Tiririca. Na maioria são parlamentares que nunca tiveram qualquer preocupação com a questão da Cultura, são representantes de partidos burgueses, que estão há anos no parlamento e são, portanto, co-responsáveis pela situação lamentável em que se encontram os artistas no país.
Sem contar que substituem os próprios trabalhadores, que são os que realmente devem controlar os atos do governo e dos parlamentares, de forma direta, através de seus organismos de classe. Agora, por orientação do governo Dilma, esses parlamentares se propõem a “defender” a cultura” quando o que realmente precisamos é de uma frente que defenda a cultura contra esses mesmos parlamentares.
Fomento em perigo
Ao mesmo tempo em que lança esse Plano, com grande alarde, o governo deixa correr em São Paulo um ataque violento contra a Lei Municipal de Fomento ao Teatro, que foi uma conquista da classe artística paulistana porque garante um mínimo de verba para os grupos. Por meio do Secretario de Cultura de São Paulo, Carlos Augusto Calil, a prefeitura criou o Decreto Municipal 51.300 para bombardear o Fomento. Aumenta a carga tributária dos projetos fomentados e converte os trabalhos prestados em convênios, além de enquadrar os grupos de dança e teatro em um mar de exigências burocráticas e fiscais, distorcendo totalmente o caráter da Lei.
Os artistas que defendem o PT, numa tentativa de livrar o governo Dilma de qualquer acusação, dizem que quem comete esse crime é a Prefeitura de São Paulo e não o governo federal. Em termos técnicos, é verdade, porque o Fomento é uma lei municipal e não federal. No entanto, politicamente isso é cabanagem, porque se o governo do PT lança um Plano Setorial de Teatro que fala em defender o fomento para todos, o primeiro que deveria fazer é sair em defesa da lei municipal de São Paulo, usar seu poder para impedir que Kassab e Calil destruam o fomento paulista e ao mesmo tempo destine mais verbas para os grupos. Se o governo Dilma e o MinC viram as costas para os ataques e deixam o fomento de São Paulo correndo perigo, não merecem nenhuma confiança por parte da classe artística de que os milhões de promessas que fazem no Plano Setorial de Teatro serão cumpridas.
Uma política cultural pela qual devemos lutar
Hoje existem cerca de 800 grupos de teatro no Estado de São Paulo. Outros tantos pelo Brasil afora. O que esses grupos precisam é de verba para desenvolver um trabalho continuo em teatro, sem o risco de interrupção e sem qualquer tipo de pressão do mercado para que façam este ou aquele tipo de teatro. Precisam de espaço para ensaiar e para apresentar seus trabalhos. Precisam de escolas públicas que ofereçam cursos de teatro de boa qualidade. E a população precisa ser incentivada a ir ao teatro, por meio de ingressos populares, salas de fácil acesso, divulgação ampla e massiva dos espetáculos.
Para isso, o governo precisa acabar com a renúncia fiscal e a parceria público-privada, mantendo uma relação direta com os artistas, sem qualquer interferência da empresa privada. Precisa incluir no orçamento da União, Estados e Municípios verba própria para as artes e a Cultura, discutida e definida em comum acordo com os artistas e a população, que possa contemplar todos os grupos teatrais, de forma equânime e democrática. Precisa abrir um plano de obras públicas para construir teatros, centros culturais em todos os bairros, salas de cinema, dança e circo, com espaços livres para os artistas ensaiarem e apresentarem suas obras. As ruas e praças públicas devem ser amplamente utilizadas pelo teatro de rua, sem qualquer tipo de repressão ou violência. O ensino do teatro e de todas as artes deve constar do curriculum de todas as escolas públicas, do primário à universidade.
Só assim a arte poderá aspirar a ser livre, verdadeira, a serviço da emancipação humana. O Plano Setorial de Teatro do governo Dilma defende uma arte a serviço do capital e do interesse privado. Por isso, não deve ser defendido pela classe artística e pela população.
CARTA DE OSASCO
28 de março de 2011
O Congresso Brasileiro de Teatro, realizado em Osasco, São Paulo, nos dias 26 e 27 de março de 2011, que reuniu profissionais do teatro nacional de vinte estados e do Distrito Federal, com os objetivos de:
discutir e refletir sobre as atuais políticas públicas culturais executadas pelas instâncias públicas e privadas;
e assegurar o debate e a implantação das propostas do setor teatral elaboradas e apresentadas à sociedade e ao Estado, ao longo dos últimos oito anos, decidiu:
considerando os relatos dos congressistas que comprovam que os espaços públicos no Brasil tem sido privatizados, por meio de cobrança de taxas, proibição aos artistas de exercer seu ofício, com o uso de violência física e moral, apesar do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira garantir o direito de ir e vir e a liberdade de expressão, entendemos que a mesma está sendo desrespeitada nas instâncias municipal, estadual e federal;
- elaborar instrumentos jurídicos que regulem a ocupação dos prédios públicos ociosos, bem como imóveis que tenham possibilidade de agregar os artistas;
- criar uma comissão para impetrar uma carta-denúncia que deverá ser entregue em audiência com a Ministra da Secretaria Nacional de Direitos Humanos;
- apoiar o projeto de lei federal apresentado pelo Dep. Fed. Vicente Cândido, lido em plenária, que regulamenta a garantia deste direito.
E, também,
considerando os esforços realizados no Congresso Brasileiro de Teatro (1979, em Arcozelo) Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo (anos 80), o Movimento Arte Contra à Barbárie (1998), Redemoinho (2004-2009), Rede Brasileira de Teatro de Rua (2007), que culminaram na elaboração da Lei Prêmio do Teatro Brasileiro,
- exigir, em caráter de urgência, a sua votação pelo Congresso Nacional e, posteriormente, a sua implementação pelo Ministério da Cultura;
- fazer mobilização nacional pela votação imediata do Prêmio Teatro Brasileiro;
A plenária do Congresso Brasileiro de Teatro exige, ainda:
- aprovação imediata do Projeto de Lei PROCULTURA, no qual está inserido o Premio Teatro Brasileiro, com dotação orçamentária própria em Lei especifica;
- a execução, pela FUNARTE, dos editais relacionados ao Fundo Setorial de Artes Cênicas;
- a definição do dia 27 de março como o Dia Nacional de Mobilização do Teatro;
Ficou decidido que a data do 2º. Congresso Brasileiro de Teatro será dias 06,07 e 08 de abril de 2012 em Brasília, Distrito Federal.
Osasco, 27 de março de 2011, Dia Mundial do Teatro.
MOÇÃO DE REPÚDIO À RENÚNCIA FISCAL
28 de março de 2011
O Congresso Brasileiro de Teatro, realizado na cidade de Osasco (SP), nos dias 26 e 27 de março de 2011, repúdia todas as formas de renúncia fiscal por considerar que estas não atendem às necessidades reais dos trabalhadores da cultura e também da população brasileira, fazendo com que o destino dos fundos públicos sejam transferidos às grandes empresas e seu fim determinado por profissionais de marketing, os quais seguem a lógica estrita do lucro.
Este modelo causa uma grande distorção na distribuição de recursos, centralizando-os nas metrópoles, aprofundando, assim, as desigualdades na distribuição de investimentos que provém de tributos e são, portanto, recursos públicos.
A renúncia fiscal beneficia projetos artísticos alheios à diversidade da produção existente, já que viabiliza produções que atendam a lógica do mercado. Além disso, exclui a maioria da população brasileira ao acesso à cultura, impondo ingressos a custos elevados e outras estratégias de exclusão.
Por não vislumbrarmos outra possibilidade além do compromisso do Estado em garantir investimento direto na cultura, sem intermediações do setor privado, exigimos a extinção do modelo de renúncia fiscal.
Manifesto do CAS ao Congresso Brasileiro de Teatro
Nós, do CAS – Coletivo de Artistas Socialistas, entretanto a arte sofre uma ameaça tão ou mais grave: a ameaça de ser manipulada pelo capital, de desaparecer como manifestação livre do pensamento e das emoções humanas. Por isso reivindicamos esse Manifesto escrito por Breton e Trotsky em 1938 queremos “a independência da arte para a revolução e a revolução para a libertação definitiva da arte!” Essas são as palavras finais do famoso Manifesto da Fiari (Federação Internacional por uma Arte Revolucionária Independente), que completa agora 73 anos, mas mantém toda a sua força vital e atualidade. Nós, hoje, não vivemos sob a ameaça de uma guerra mundial, como na época em que o Manifesto foi escrito,
Pressionada pelas leis do mercado, a arte tornou-se um produto e não mais o fruto das necessidades e inquietações humanas. Pressionado pelas imposições da indústria cultural, o artista tornou-se um vassalo do capital. Ele depende das benesses do Estado, dos bancos, do grande capital, para poder trabalhar. O rumo da arte brasileira está nas mãos dos departamentos de marketing dos bancos e das grandes empresas.
Os artistas e todos os profissionais da cultura não podem mais consentir com essa degradação. O controle da arte e da cultura de um país significa o controle desse país.
A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades e interesses do homem e da humanidade de hoje, tem de ser revolucionária, tem de aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade. Para isso, é preciso lutar ao mesmo tempo para que todos tenham emprego e acesso à educação e saúde de boa qualidade, enfim, lutar pela emancipação dos trabalhadores.
Temos de lutar para que o Estado cumpra seu papel. Sem exercer qualquer tipo de comando sobre a criação artística e intelectual da sociedade, o Estado deve usar os impostos pagos pela população para construir as condições econômicas e políticas para o pleno desenvolvimento dos potenciais artísticos e culturais da população, respeitando sua diversidade quer regional, racial, sexual, política e outras.
Na época atual, caracterizada pela violência capitalista, o artista está ameaçado da privação do direito de viver e continuar sua obra pelo bloqueio de todos os meios de difusão e pela falta absoluta de incentivos financeiros por parte do Estado. E quando chegam a receber, não passa de algumas migalhas, ou esmolas, lançadas aos artistas pelos poderes públicos. As parcas leis de incentivo existentes são como tábuas de salvação às quais os artistas se agarram desesperadamente, como única fonte de recursos para sua arte. É por meio delas que o Estado e as empresas capitalistas fazem a seleção dos artistas e das artes que desejam que continuem atuantes.
A Lei de Fomento foi uma grande conquista dos artistas da cidade de São Paulo, que deve ser defendida a todo custo; contudo ela precisa ser aperfeiçoada para contemplar a ampla maioria dos artistas, e não ser uma migalha implorada a cada dia. Neste sentido defendemos a implantação do Prêmio Brasileiro de Teatro para que essa conquista seja levada para todo o país, e de forma permanente.
Não queremos esmolas por nosso trabalho. Não queremos mais pedir de joelhos que subvencionem a nossa arte. Milhares e milhares de artistas isolados, cuja voz é coberta pela falta absoluta de uma política clara de incentivo por parte do Estado, estão dispersos e frustrados. Numerosas pequenas e médias companhias tentam agrupar os artistas que procuram manter-se a todo custo. Toda tendência progressiva na arte sofre dois destinos: ou é difamada pelo capitalismo como uma degenerescência ou então absorvida, num vertiginoso e infernal processo antropofágico pelo sistema capitalista, rapidamente transformando-a em mercadoria.
Temos que lutar contra isso. O artista verdadeiro tem de estar onde o povo está. Devemos apoiar as lutas que os trabalhadores e povos travam em todo o mundo por mais liberdade, por melhores condições de vida, contra a ingerência imperialista que suga suas riquezas deixando o povo à míngua. Essas lutas vão ao encontro da emancipação humana, tão necessária ao desenvolvimento artístico. As revoluções que hoje sacodem os países árabes são exemplos a serem seguidos por todos os povos oprimidos e explorados. Essas lutas são nossas lutas, porque não haverá uma arte livre e independente enquanto existir um único povo oprimido e explorado.
O que defendemos:
A Cultura deve ser tratada como um serviço público, tais como a saúde e a educação;
O Teatro deve ser financiado pelo Estado de forma ampla, com um orçamento próprio, independente de quaisquer leis de incentivo;
Todos os teatros devem passar para as mãos do Estado, sem qualquer tipo de indenização;
Fim dos monopólios privados de produção e exploração da Arte;
A defesa dos grupos amadores e independentes, livrando-os da pressão econômica, para que possam se desenvolver livremente, e
A defesa do mais profundo internacionalismo no Teatro e a mais estreita relação entre os artistas de todo o mundo.
março de 2011
UM PROGRAMA DE LUTA PELA CULTURA
Introdução
O centro do problema a ser atacado hoje na questão da cultura é a sua privatização. A burguesia e seus sucessivos governos fizeram da cultura um negócio, dominando-a tanto economica quanto ideologicamente, e colocando-a a serviço de seus valores e de suas concepções de vida. E também a serviço da privatização das empresas estatais, contra os interesses da classe trabalhadora.
A arte e a cultura, no capitalismo, obedecem as leis de mercado e as necessidades da burguesia de manter a sua dominação sobre a classe trabalhadora. Todos os problemas relativos à cultura hoje, nos países coloniais e semi-coloniais, como o Brasil, têm a ver com essa relação mercantil, que faz da arte a mais reles mercadoria. Portanto, nosso programa tem de partir da necessidade urgente de emancipar a cultura, de desatá-la das mãos do capitalismo, única forma de atingir uma arte e uma cultura verdadeiramente livres, a serviço da emancipação humana.
Apesar das promessas do governo Lula, a cultura continua relegada a segundo plano pelo Estado e, com isso, a iniciativa privada vem avançando sobre esse setor estratégico para o país, tanto do ponto de vista ideológico quanto econômico. Só para se ter uma idéia, dados da Fundação João Pinheiro, empregados pelo Minc, mostram que em 1997 o segmento cultural na economia brasileira movimentou 1% do PIB (equivalente a 7 bilhões de reais), mas o orçamento público destinado à área cultural foi de apenas 0,02% do PIB. Os dados são antigos, mas a realidade ainda é a mesma. Hoje o orçamento é de 0,06% do PIB, quando a participação da cultura na economia mais do que triplicou. Logo, do ponto de vista estritamente econômico, a cultura, mesmo com pouco investimento estatal, contribui com parte importante da riqueza nacional. O resultado é um acelerado processo de privatização da cultura, com implicações ainda pouco previstas e discutidas pela classe trabalhadora.
É preciso afirmar e reafirmar que não poderá haver uma cultura verdadeiramente livre enquanto persistir essa situação, porque tudo o que a cultura já conseguiu avançar até hoje, e que deveria servir para a emancipação humana, só servirá para aprofundar as desigualdades e o fosso entre as classes sociais.
No capitalismo, o desenvolvimento científico e artístico não está conseguindo livrar a humanidade da barbárie, não está conduzindo à emancipação humana porque encontra-se vinculado a uma determinada formação social, o modo de produção capitalista. Assim, de instrumentos para a emancipação humana, a ciência, a arte, a cultura em geral, se transformam em seu contrário, em instrumentos de barbárie e opressão.
Hoje, a privatização da cultura, a transformação da arte em mercadoria, sua degeneração em produto de consumo, é a expressão mais desenvolvida da crise da sociedade burguesa em que vivemos. A indústria cultural expressa a forma repressiva da cultura, a sua forma autoritária e destruidora da identidade humana. Faz o homem interiorizar-se como mercadoria, como produto e objeto.
A deficiência da experiência cultural e artística continuada constitui a característica mais marcante da sociedade em que vivemos, e isso coloca em xeque a noção de “progresso da humanidade”. Estamos realmente progredindo? É preciso perguntar. Falamos do trabalho, dizemos que o trabalho forma os homens, mas o que se universalizou foi o trabalho alienado e alienante, trabalho morto que deforma os homens, ao invés de formá-los, que lhes quita autonomia ao invés de conduzi-los a uma autonomia cada vez maior.
Reverter essa tendência não seria simplesmente uma necessidade “cultural”, mas uma necessidade material, concreta e urgente de deter os rumos da barbárie que avança na sociedade; trata-se, portanto, de uma necessidade vital, uma questão de sobrevivência.
Hoje, um Programa para a Cultura tem de atacar o nó do problema: a privatização da cultura e sua transformação em instrumento que se volta contra os próprios trabalhadores, ao ser utilizada pelo Capital para aprofundar a exploração e manter o atraso no nível de consciência dos trabalhadores. A frase de Marx, de que no capitalismo a educação serve para fazer os trabalhadores “aceitarem” ser classe proletária, interiorizando a dominação, por exemplo, nos seus hábitos, estende-se para o âmbito de toda a cultura.
A política cultural na democracia burguesa determina toda a estrutura de sentido da vida cultural por meio das regras e das estratégias da produção econômica capitalista, que se inoculam nos bens culturais no momento em que se convertem em mercadorias, em produtos para o consumo, nos quais seu valor de troca antecede seu valor de uso; os valores de uso inseridos nos produtos culturais se amoldam aos seus valores de troca, aos interesses econômicos da indústria. A própria organização da cultura segue os preceitos do modo de produção das mercadorias, moldando os sentidos humanos para aceitar que esse seja o único caminho possível.
A classe trabalhadora – incluindo os artistas – precisa dotar-se de um programa de combate para libertar a arte e a cultura das forças econômicas que a oprimem e manipulam, como forma indireta de manipular a própria classe trabalhadora.
É preciso lutar pela nacionalização de todos os espaços culturais – teatros, museus, salas de espetáculos, bibliotecas, centros culturais etc – para que passem a ser dirigidos pelos trabalhadores em geral, junto com os trabalhadores da arte, que devem decidir a política cultural a ser realizada, a aplicação das verbas públicas, ao mesmo tempo que devem garantir total liberdade de expressão para todas as correntes e tendências artísticas.
O lugar da cultura no orçamento nacional
Para analisar a situação da arte e da cultura devemos partir do exame da situação da economia e do grau de dependência dos países coloniais e semi-coloniais em relação ao imperialismo. Lênin afirma que, na fase imperialista, o capitalismo transforma-se em um sistema universal de dominação colonial e estrangulamento financeiro da imensa maioria da população do planeta por um punhado de países “adiantados”, por meio dos monopólios e dos grandes bancos[1]. O exame do Orçamento Geral da União – Executado – 2009 no governo Lula, publicado pela Auditoria Cidadã da Dívida em 30 de março de 2010, confirma o estrangulamento financeiro da população brasileira como em nome de quem ocorre esse estrangulamento.
O contraste entre os 35,57% reservados ao pagamento de juros e amortizações da Dívida e o 0,06% destinados à Cultura, o 0,45% à Ciência e Tecnologia, os 2,88% à Educação, o 0,01% à Habitação falam por si só. Contudo, a situação da Cultura é descrita desta forma na “Prestação de Contas 2009” , publicado por Comunicação Social/MinC: “Nos últimos sete anos, o Poder Executivo Federal tem adotado uma estratégia de atuação para fomentar o acesso público aos bens e serviços culturais como uma das formas de reduzir as disparidades sociais e promover a cidadania. Os recursos destinados à Cultura, desde 2005, quase triplicaram e as maiores ampliações, em termos percentuais, ocorreram nos anos de 2007 e 2009, com acréscimos de 30% e 25%, respectivamente”.
Se os recursos destinados à Cultura quase triplicaram nos últimos anos, e se em 2009 representaram 0,06%, o que se dirá dos anos anteriores. Além disso, há de se rever o que se entende por Cultura, no âmbito do Ministério.
Segundo o relatório, a Cultura contou com recursos da ordem de R$ 1,3 bilhão na execução orçamentária e financeira no exercício de 2009, recursos oriundos do Orçamento Fiscal e de Seguridade Social, distribuídos em ações programáticas, executadas por meio do Ministério da Cultura e de outros órgãos. No Sistema do Ministério da Cultura foram executadas ações de 15 programas, e destacam, dentre dez programas finalísticos, algumas delas:
Ações
|
Objetivo
|
Recursos orçamentários em 2009
|
Brasil Patrimônio Cultural
|
preservação do patrimônio histórico
|
R$ 68,2 milhões
|
Monumenta
|
recuperação de sítios urbanos históricos e a conscientização da população quanto ao assunto
|
R$ 20,3 milhões
|
PAC Cidades Históricas
|
Programa de Aceleração do Crescimento Cidades Históricas
|
R$ 142 milhões
|
Engenho das Artes
|
Fomento de 1.629 projetos, bem como a capacitação de 1.549 artistas e técnicos por meio de oficinas nas diversas regiões do país, nas Artes Integradas - audiovisual, artes visuais não-cinematográficas e música
|
R$ 273,8 milhões
|
Cultura Viva - Arte, Educação e Cidadania
|
2.517 Pontos de Cultura no território nacional (projetos e instituições conveniadas), além de 2 unidades no exterior
|
R$ 139,6 milhões
|
Livro Aberto
|
Estímulo ao hábito da leitura, a promoção da literatura e a difusão do livro
|
R$ 103,6 milhões em recursos orçamentários autorizados para exercício e, dentre as iniciativas, investiu em obras, equipamentos e material para bibliotecas públicas
|
Quando se lê que, no “Livro Aberto”, dos R$ 103,6 milhões destinados a essa ação, parte foi investida em obras, equipamentos e material para bibliotecas públicas, percebe-se que, mais do que a população, as empreiteiras e empresas privadas são as verdadeiras beneficiadas pelo programa. Além disso, mesmo que a verba fosse empregada totalmente para “valorizar a reflexão, o debate cultural e a promoção da língua portuguesa, estimulando o hábito da leitura e a difusão do livro”, como divulgam na p. 7 da Prestação de Contas do Presidente da República – PCPR 2009 - , e se lembrarmos que o Brasil conta atualmente com aproximadamente 193 milhões de pessoas, a verba representaria exatamente R$ 0,50 por habitante/ano. O que equivale dizer: isso é igual a nada.
Em suma, enquanto o Poder Executivo afirma que manteve sua estratégia de atuação iniciada em 2003, com o objetivo de: “ampliar o acesso público aos benefícios da Cultura como forma de reduzir o enorme fosso social que existe entre os cidadãos brasileiros, decorrente da má distribuição das riquezas do País.” (Prestação de Contas do Presidente da República – PCPR 2009 – p.1)
Essa situação mostra também que continua sendo necessária a exigência de não pagamento da dívida externa como forma de aumentar a verba para a Cultura.
O governo Lula e as chamadas “leis de incentivo”
Se o capital financeiro é o grande responsável pela condição de penúria da Cultura atualmente, os incentivos fiscais oferecidos à iniciativa privada em nome de projetos culturais explicitam outra forma de favorecer o capital privado.
Segundo “Prestação de Contas do Presidente da República – PCPR 2009 – “, o Governo Federal, além dos recursos orçamentários, disponibiliza a produtores culturais recursos financeiros oriundos de renúncias de receitas fiscais. São basicamente três instrumentos legais que respondem por esses procedimentos: Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991), Lei do Audiovisual (Lei nº 8.685/1993) e Medida Provisória nº 2.228-1/2001.
Conforme o relatório, “A Lei Rouanet instituiu um mecanismo de incentivo fiscal a projetos culturais para apoiar o Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC. O art. 18 da referida norma permite ao contribuinte, pessoa física ou jurídica, abater integralmente no imposto de renda valores destinados a apoiar projetos culturais em segmentos determinados. Outros segmentos culturais são atendidos com base no art. 26 do referido dispositivo legal, sendo que, nesta segunda situação, podem os contribuintes pessoas jurídicas abater no imposto de renda até 30% ou 40% de valores alocados em projetos culturais sob a forma de patrocínio ou doação.” (p. 15)
A Lei Rouanet e os demais dispositivos legais nas mãos das grandes multinacionais e das indústrias nacionais significam isenção de impostos para aplicação em propaganda, ou seja, os contribuintes – pessoas jurídicas – podem “abater no imposto de renda até 30% ou 40% de valores alocados em projetos culturais sob a forma de patrocínio ou doação”. As empresas deixam de pagar impostos e o utilizam na divulgação de sua marca. É prerrogativa das empresas escolher os projetos a serem patrocinados, o que introduz um elemento perverso no meio artístico: os agentes culturais devem se dobrar aos critérios dos patrocinadores. Em outras palavras, o setor privado define o perfil dos projetos culturais. Não é preciso dizer que, como resultado dessa prática, temos inúmeros projetos vinculados à industria cultural de massa e ínfimos projetos conseqüentes à disposição do público.
A classe trabalhadora é a grande prejudicada, porque paga duplamente por esses produtos culturais degenerados: paga os impostos, que vão para os cofres das empresas, e depois paga os ingressos, para poder usufruir minimamente de um produto cultural.
Acesso à cultura: um desastre
Essa política incentiva a concentração dos equipamentos culturais ao invés de sua democratização. O quadro hoje do acesso à cultura no país é desastroso. A última pesquisa divulgada pelo IBGE sobre o tema é de 2007, e foi feita nos 5.564 municípios brasileiros. Vejamos alguns números:
- 84,6% dos municípios não têm órgãos exclusivos para gerir a Cultura. Em 72% deles ainda predomina a Cultura acoplada a outros temas, e em 12% deles, a Cultura é subordinada a outra secretaria (em geral, da educação ou do turismo). Quando a Cultura está em conjunto com outras políticas setoriais, ela costuma ser considerada de forma marginal.
- Em apenas 6,1% dos municípios a Cultura está vinculada diretamente à chefia do Executivo (da prefeitura). Nesses casos, ela costuma ser vista como uma área produtora de eventos que beneficiem a imagem da prefeitura local.
- O fato de não existir um órgão gestor é um indicador importante do pouco prestígio da área. Apenas 4,2% dos municípios têm Secretarias de Cultura.
- Apenas 58 mil pessoas estão empregadas na área da Cultura, nas administrações municipais, ou seja, uma média de 10,4 funcionários por município.
- 42% dos municípios declararam não ter uma política cultural definida e apenas 5,6% deles têm uma legislação própria de incentivo à Cultura.
- Os recursos municipais destinados à Cultura foram em média de 273 mil reais, o que corresponde a apenas 0,9% do total da receita arrecadada pelo município. A região Nordeste foi a que destinou mais recursos (1,2%) e a centro-oeste a que menos destinou (0,6%).
- Apesar de ter melhorado o índice de bibliotecas públicas (em 1999, 20% dos municípios brasileiros não tinham uma biblioteca pública, e em 2007 esse percentual baixou para 10%), a situação dos demais equipamentos culturais continua alarmante: 76% municípios não têm nem um centro cultural; 79% dos municípios não têm um museu sequer; 79% não têm nem um teatro ou sala de espetáculos e 92% não têm uma única sala de cinema. Em contrapartida, a TV aberta cobre 95% dos municípios brasileiros. A constatação desses dados explicita ainda mais o peso de que se reveste o instrumento cultural de maior penetração no país, a televisão, e gera todas as dúvidas possíveis acerca do conteúdo dos programas transmitidos pelas grandes redes.
Pode-se afirmar, portanto, que o governo Lula não cumpre a Constituição brasileira de 1988, em cujo art. 215 diz que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
O abandono dos municípios em favor dos grandes centros vem junto com uma visão da cultura como negócio e evento. Com argumentos essencialmente democráticos - o Estado não pode ser paternalista, é preciso evitar o “dirigismo” e a cultura não pode ficar à mercê de ideologias políticas – o governo federal, seguido pelos estaduais e municipais, vem entregando a administração das instituições públicas a terceiros, por meio das Organizações Sociais (OS) de caráter privado. São essas OSs que agora passam a determinar o destino dos orçamentos dessas instituições (como museus, bibliotecas, teatros e centros culturais) e em geral o que fazem são megaeventos milionários, com grandes estrelas nacionais e internacionais, tudo para gerar projeção de mídia.
As chamadas “leis de incentivo”, como a Lei Rouanet, são outro suporte dessa privatização indireta da Cultura. São mecanismos sofisticados de transferência do dinheiro público para as empresas privadas, que passam assim a gerenciar os “negócios” da arte. É dinheiro público para a arte privada. As empresas privadas “investem” na arte – organização de megaeventos, sobretudo – e abatem do montante envolvido a parte devida do imposto de renda. Não é preciso dizer que o quanto de superfaturamento ocorre nessas transações milionárias, sem contar no retorno de mídia para essas empresas, que passam a se intitular, com o apoio do governo, de “empresa amiga da cultura”.
Esse processo vem impedindo o desenvolvimento cultural, já que em última instância a Cultura se desenvolve por meio da criação e da experimentação. E são justamente esses âmbitos, o das criações embrionárias, os artistas que estão despontando ou apontando novos caminhos, a arte ainda experimental e mesmo alternativa, enfim, o processo de criação artística que não interessa ao capital privado porque é um terreno instável, que não gera retorno financeiro e muito menos de mídia.
Armou-se um verdadeiro festival de “leis” em todos os âmbitos, federal, estadual e municipal, cujos editais inserem os mais insólitos tipos de exigências burocráticas. Para disputar essas “leis” os artistas precisam se enquadrar. Isso vem levando a um processo gigantesco de empresariamento, o surgimento de inúmeras pequenas empresas ou grupos de artistas que deixam de lado seu ofício para enveredar pelo mundo dos negócios. Constituem empresas de forma a adequar-se ao modelo das empresas capitalistas, como única forma de concorrer aos editais para verba pública. Isso gera uma burocracia enorme, com uma multidão de “experts” em leis de incentivo, pessoas das quais os artistas dependem como o ar que respiram. E o ambiente no meio artístico passou a ser um ambiente de guerra, de disputa diária pelas migalhas das leis de incentivo. Reproduzindo o ambiente da produção capitalista, no meio artístico só os grandes têm espaço, aqueles que têm mais capital acumulado, aqueles que têm trânsito livre nos corredores dos palácios e das empresas, mendigando apoio de políticos burgueses corruptos e oportunistas, e empresários loucos por espaço na mídia e retorno institucional. Toda essa máquina é alimentada com dinheiro público, oriundo dos impostos pagos pela população trabalhadora e pobre.
Assiste-se, portanto, a um acelerado processo de privatização da Cultura no Brasil, a criação de grupos de interesses e nichos de poder que põem e dispõem numa área tão fundamental e estratégica para o país como é a arte, a cultura e a ciência. Essa “política cultural” vem atrelada a uma concepção elitista da arte, que pressupõe uma separação cada vez mais profunda entre trabalho manual e intelectual, entre o fazer artístico e seu consumo, entre a formação e a prática artística.
O resultado é uma separação territorial cada vez mais profunda entre uma arte de elite, feita para uma minoria que pode pagar por ela e tem a formação suficiente para usufruir dela, tratando a arte e a cultura como propriedade privada, e a imensa maioria da população que só tem acesso a um tipo de “cultura” feita em massa, em escala industrial e seguindo os padrões da mercadoria, como os filmes de Hollywood e os programas de auditório ou os reality shows da TV.
De instrumento de libertação e emancipação, a arte torna-se instrumento de moldagem dos homens para aceitar o status quo, fornecendo um tipo determinado de satisfação para os sentidos. Mas é uma satisfação que trava as possibilidades da experiência cultural, provocando uma estagnação e regressão dos sentidos humanos. Ao mesmo tempo, esse travamento da experiência cultural impede que se manifeste o lado duplo da Cultura, como instrumento de crítica e de resistência, permanecendo apenas como um instrumento de aceitação e adaptação.
Essa concepção da Cultura como um território de privilégios tem de ser combatida. E para isso é necessário rebater os argumentos supostamente democráticos do governo Lula, que lançou uma discussão: até onde deve ir o papel do Estado na cultura, e até onde o mercado deve comandar esse assunto?
É urgente uma política cultural que nacionalize os equipamentos culturais – como teatros, museus, galerias de arte, centros culturais, etc – colocando-os integralmente nas mãos do Estado, que deve financiá-los sem qualquer interferência em suas opções artísticas e livres de qualquer tipo de dirigismo ideológico.
A burguesia, que hoje tem em suas mãos o controle integral da cultura, da arte e da ciência, deve ser expropriada e afastada de todo assunto relativo a esses âmbitos, considerados que são essenciais para a vida humana. O controle dos equipamentos e todos os assuntos da arte, da cultura e da ciência deve estar nas mãos dos trabalhadores e especialistas desses setores, juntamente com a população beneficiária de suas ações.
A luta dos artistas e trabalhadores da Cultura
Na época do regime militar, os artistas cumpriram um papel de vanguarda na luta contra a censura e pela redemocratização. A mobilização era permanente, unindo artistas famosos e artistas populares, das periferias, de todos os rincões do país. Adotaram os métodos de luta da classe operária, com greves, passeatas, atos públicos, e souberam utilizar o poder de atração que têm os artistas, sobretudo os da televisão, para angariar o apoio da população. Muitos artistas foram reprimidos, exilados e mortos pela ditadura.
No calor dessa luta, os artistas se juntaram aos trabalhadores, levaram seu apoio às greves do ABC, e estiveram também na vanguarda da luta pela recuperação de seus organismos de classe. Os pelegos foram expulsos dos principais sindicatos de artistas em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Com o fim da ditadura, a tendência predominante entre os artistas foi o recuo nas lutas políticas e a batalha por um espaço no mercado de trabalho, por ampliar o orçamento estatal para a Cultura e pela dignidade da arte e do artista. A Cultura foi duramente atacada, já que esse foi o momento culminante da introdução das políticas neoliberais pelos governos Collor e Fernando Henrique. Esperançosos, os artistas votaram em massa no PT. As ilusões no governo Lula eram grandes e não sem razão, já que Lula, espertamente, entregou o Ministério da Cultura a um dos artistas mais reconhecidos do país, Gilberto Gil, que tratou de esvaziar as ações da “classe” artística de todo conteúdo político, isto é, todo tipo de ação direta.
Foi um retrocesso enorme. As ações dos artistas passaram todas para o plano parlamentar. Houve uma valorização enorme da democracia burguesa. Generalizou-se a crença de que “tudo passa pelo parlamento”, pelos políticos burgueses, deputados, senadores, prefeitos. O máximo de radicalismo nas ações da “classe” artística passou a ser a ida ao Congresso Nacional para pleitear junto a algum deputado o voto nesta ou naquela emenda, que defenda este ou aquele orçamento para a Cultura. Pedir que os deputados e senadores fossem “sensíveis” à Cultura e à arte.
De certa forma, os artistas voltaram a fazer a sua experiência com a democracia burguesa. Um a um, os políticos burgueses foram tirando a máscara e mostrando o que verdadeiramente pensam da Cultura e da arte. Mas os artistas ainda estão longe de chegar a uma conclusão. Estão fazendo a experiência com os políticos e poupando o governo. As esperanças em Lula ainda são enormes, apesar dos tombos e trombadas.
Essa valorização da democracia burguesa e do governo Lula, junto com um atraso político e a falta de uma direção revolucionária para o conjunto da classe trabalhadora, fez com que os sindicatos se burocratizassem. Hoje praticamente a totalidade dos sindicatos de artistas está sob o controle da burocracia. Mas a necessidade da organização sempre se impõe e levou ao surgimento de inúmeras entidades de artistas, que vêm lutando por mais verbas para a Cultura e contra a sua privatização.
Seguem o modelo imposto pelo governo e pelas necessidades de pleitear verba, que é feita por setores, os chamados grupos setoriais. Desses, tradicionalmente os mais organizados são os artistas de teatro.
Dentre essas entidades, a mais forte hoje é sem dúvida a Cooperativa Paulista de Teatro, que reúne 800 grupos teatrais de todo o Estado de São Paulo, e tem mais de 4 mil associados. Apesar de ser uma entidade de pequenos produtores, a Cooperativa hoje cumpre um papel de defesa do trabalho artístico, além de um papel político, diante do vazio deixado pelo Sindicato.
Além da Cooperativa existem inúmeros movimentos de grupos teatrais nos bairros da periferia, em especial na Zona Leste de São Paulo, e também em outros Estados , como Minas Gerais e Rio de Janeiro. A organização dos artistas no Nordeste também já é tradicional. O que une todos esses grupos é a luta por mais verba para a Cultura e contra a privatização. No entanto, nas áreas mais carentes, como no Nordeste, as leis de incentivo ainda são bem vistas por serem a única alternativa diante da ausência de leis de fomento locais.
PROGRAMA
- A Cultura deve ser tratada como um serviço público, como a saúde e a educação.
- A Cultura e todas as artes devem ser financiadas pelo Estado de forma ampla, com um orçamento próprio e compatível com as suas necessidades. Com isso, as “leis de incentivo” baseadas na renúncia fiscal poderão ser abolidas.
- Todos os equipamentos culturais – museus, centros culturais, teatros, galerias de arte etc – devem passar para as mãos do Estado, sem qualquer tipo de indenização. O Estado deve prover esses equipamentos de toda verba necessária para seu funcionamento.
- Os equipamentos culturais devem ser administrados pelos funcionários, pelos artistas e trabalhadores da cultura, em conjunto com a população local.
- Todas as escolas públicas devem funcionar como centros de cultura completos, geridos pela comunidade e os artistas da região, organizados em suas entidades.
- Nós defendemos toda liberdade em arte. Sendo assim, não deve haver qualquer tipo de privilégio a qualquer escola, grupo ou corrente artística. A contrapartida também se impõe: não deve haver qualquer tipo de discriminação a esta ou aquela corrente artística.
- Defesa de todas as formas de expressão artística. Recusa a qualquer tipo de dirigismo cultural.
- Os primeiros passos para a prática artística devem ser promovidos pela escola. Logo, a Educação Artística (incluindo as disciplinas de Estética e História da Arte) deve ser matéria obrigatória no curriculum de todas as escolas públicas, a partir do ensino básico e fundamental.
- O governo deve traçar um plano de obras públicas nos âmbitos federal, estadual e municipal, que construa centros culturais em todos os bairros. Os municípios e bairros periféricos das grandes cidades devem ser os primeiros atendidos, como forma de corrigir o déficit existente hoje em acesso à Cultura.
- Pela defesa de todas as formas de organização independente dos artistas e trabalhadores da arte e da cultura que lutam pela liberdade artística.
- Pelo fim de todo tipo de exploração (comercial e ideológica) do trabalho artístico e intelectual.
- A Cultura não deve ser usada como moeda de troca ou cacife político para os partidos obterem votos em época de eleição.
- Fim dos monopólios privados de produção e exploração da arte e da cultura.
- Repúdio a todo tipo de marketing que interfere nas obras artísticas e muda o seu caráter, com o único objetivo de obter retorno financeiro.
- Os meios de produção da arte e da cultura devem estar nas mãos dos trabalhadores.
- Abaixo a ingerência de organismos internacionais e empresas multinacionais na área da Cultura. Fora a Unesco e o Bird do financiamento das obras de preservação do patrimônio histórico brasileiro.
- Pela defesa do mais profundo internacionalismo na arte e da mais estreita relação entre os artistas de todo o mundo, trocas de experiências e realização de projetos conjuntos.
- Pela defesa da chamada “arte de vanguarda” e de todas as escolas artísticas experimentais, que dependem de subsídio estatal para poder se desenvolver e propor novos caminhos para a arte.
- Defesa dos grupos amadores e independentes, livrando-os da pressão econômica para que possam se desenvolver livremente.
Como marxistas, defendemos o mais amplo acesso da população às atividades culturais e artísticas de sua escolha. Defendemos também o mais amplo subsídio estatal, para que as manifestações artísticas sejam acessíveis, com ingressos a preços populares ou mesmo gratuitos. Defendemos a visão da arte como expressão dos sentimentos humanos e por isso propugnamos pelo fim da divisão entre trabalho manual e intelectual. E defendemos que todo artista seja remunerado por seu trabalho, mas que nenhum artista seja obrigado a trabalhar com o único objetivo de ganhar dinheiro”.
CULTURA NÃO É MERCADORIA
Maria Cecília Garcia
Qual programa devemos propor para a cultura?
Agora, que estamos em época de eleições, as forças políticas estão elaborando suas propostas para todos os aspectos da sociedade, inclusive a cultura. O CAS também vem debatendo intensamente essa questão, no sentido de construir um programa socialista para a cultura e a arte. Você poderá acompanhar esse rico processo de discussão por meio de nosso blog. E se quiser poderá enviar as suas propostas, os seus comentários e, melhor ainda, poderá participar das reuniões do CAS, sempre divulgadas em nosso blog.
Aqui vai uma síntese do que, no nosso entender, deve ser o eixo norteador de um programa socialista para a cultura.
O centro do problema a ser atacado hoje na questão da cultura é a sua privatização. A burguesia e seus sucessivos governos fizeram da cultura um negócio, dominando-a tanto economicamente quanto ideologicamente, e colocando-a a serviço de seus valores e de suas concepções de vida. A arte e a cultura, portanto, obedecem as leis de mercado e as necessidades da burguesia de manter a sua dominação sobre a classe trabalhadora. Todos os problemas relativos à cultura hoje, nos países coloniais e semi-coloniais, como o Brasil, têm a ver com essa relação mercantil, que faz da arte a mais reles mercadoria. Portanto, nosso programa tem de partir da necessidade urgente de emancipar a cultura, de desatá-la das mãos do capitalismo, única forma de atingir uma arte e uma cultura verdadeiramente l ivres, a serviço da emancipação humana.
IMPERIALISMO E RECOLONIZAÇÃO CULTURAL
Maria Cecília Garcia
Só o marxismo pode fazer com que entendamos a situação da arte e da cultura
na América Latina hoje
Qualquer debate sobre a questão da arte e da cultura hoje no Brasil e no conjunto da América Latina deve partir do fato de que o controle e ingerência do imperialismo sobre a estrutura econômica e política dos países latino-americanos foi gerando, talvez em um ritmo um pouco mais lento, mas nem por isso menos profundo, alterações estruturais também no modo de produção cultural desses países.
Não é possível entender a situação da cultura nos países da América Latina sem levar em conta a penetração imperialista. Nas Teses de Fundação da IV Internacional, escritas em 1938, Trotsky já ressaltava o lugar da América Latina como uma das principais esferas de influência do imperialismo americano. “Eles proclamaram sua intenção de manter essa hegemonia contra a intromissão dos imperialismos europeu e japonês. A forma política dessa proclamação foi a Doutrina Monroe que, desde o início de uma política claramente imperialista no final do século XIX, vem sendo interpretada por todas as administrações de Washington como o direito do imperialismo americano à posição dominante nos países da América Latina, previamente à conquista da posição de ser seu explorador exclusivo ”[1]. Lênin já demonstrara que na fase imperialista, o capitalismo transformou-se em um sistema universal de dominação colonial e estrangulamento financeiro da imensa maioria da população do planeta por um punhado de países “adiantados”, por meio dos monopólios e dos grandes bancos[2]. A cultura não poderia salvar-se, imune.
Na história das relações entre os Estados Unidos e os países latino-americanos, as questões culturais nunca foram, obviamente, as mais importantes, mas sempre estiveram presentes e foram tratadas como indispensáveis à manutenção da hegemonia do imperialismo norte-americano no hemisfério. Como disse Otávio Ianni, “Eles reconheceram que a ‘indústria do conhecimento’, a ‘frente ideológica’ e a ‘conquista das mentes’ era fundamental para a consolidação e extensão de sua hegemonia” (Imperialismo e Cultura) [3].
Durante a Guerra Fria, a política cultural do imperialismo tornou-se mais agressiva diante da necessidade de contrapor-se à idéia do socialismo, que refletia a onda revolucionária que percorria o mundo, apesar do domínio burocrático da URSS. A ingerência do Banco Mundial foi decisiva. Criado em 1944 na Conferência de Bretton Woods para a reconstrução dos países devastados pela Segunda Guerra (1939-45), o Bird passou a financiar projetos voltados para a infra-estrutura econômica, de energia e transporte na América Latina e África como forma de o imperialismo norte-americano ampliar suas áreas de influência. Isso foi particularmente intenso na década de 70, na gestão de Robert McNamara (1968-81), ex-secretário de Defesa e um dos responsáveis pela guerra do Vietnã. As dificuldades na guerra, a ameaça de uma onda revolucionária que percorria o mundo e um crescente sentimento anti-americano nos países coloniais e semi-coloniais, impunham rever a estratégia imperialista. E o Banco Mundial passa a criar programas para atender as populações “carentes”, mais propensas ao “comunismo”, por meio de escolas técnicas, programas de saúde e controle da natalidade. Muitos desses programas tinham como alvo as mulheres, já que o Banco Mundial considerava que o crescimento demográfico nos países periféricos era um impedimento para a melhoria das condições de vida, e por isso, era preciso reduzir as taxas de fecundidade, ampliando o acesso das mulheres à educação.
Em 1961, a Conferência de Punta del Este teve um ponto específico sobre as relações culturais EUA-AL, e foi aprovada uma resolução “recomendando” que os países latino-americanos adotassem programas decenais de educação, seguindo as diretrizes impostas pelo Departamento de Estado americano. É interessante lembrar que nessa Conferência foram adotados programas comuns entre EUA e América Latina para fazer frente às repercussões da vitória da revolução em Cuba. Tudo , portanto, o que foi ali aprovado tinha esse caráter, o de alertar as burguesias latino-americanas contra as ameaças de “subversão comunista”. Os EUA assumiram a gestão dos negócios relativos à educação, ciência e cultura nos países latino-americanos, áreas que, apesar de complexas e dispendiosas, são chaves p ara a dominação colonial [4]. Como diz Eduardo Galeano, “cada vez que o imperialismo exalta suas próprias virtudes, convém revisar os bolsos”[5].
A indústria cultural do imperialismo
Nesse período ocorreu um salto da fabricação industrial da cultura e a transformação de todo objeto artístico em mercadoria. E qual foi o resultado? A história deu seu veredicto. Nada disso teve a ver com o que dizem os autores de best sellers surgidos nos últimos tempos que exaltam a “aldeia global”, como Alvin Toffler, que anuncia “a boa nova de uma sociedade feliz, marcada pela exuberância da técnica e a comunhão dos homens em uma consciência planetária”[6]. Para os países coloniais e semi-coloniais, essa sociedade feliz nunca esteve mais distante, porque esse processo ocorreu durante os anos 80, com a crise da dívida externa e a introdução das políticas neoliberais que aprofundaram o fosso entre as classes e a desigualdade no acesso aos bens culturais. Houve um salto no processo de recolonização da América Latina, com um aumento inédito penetração do capital estrangeiro e da desnacionalização das economias latino-americanas. Na revista Marxismo Vivo, tratando desse processo de recolonização da América Latina, José Welmovick lembra que De conjunto, a ofensiva recolonizadora trata de transformar a burguesia nativa de sócia menor do imperialismo em gerente das empresas deste, no sentido de que já tiram seus lucros das quotas de mais-valia que pertencem aos investidores estrangeiros e, no melhor dos casos, administram a propriedade de outros, e não as suas. A ofensiva recolonizadora trata também de transformar os governos e instituições em fantoches do imperialismo, em seus administradores coloniais[7].
Como expressão da falência de um projeto nacional-desenvolvimentista e a conversão das burguesias nacionais em gerentes das empresas estrangeiras, esse processo implicou igualmente na falência de um projeto de construção de uma cultura nacional. E igualmente a tal aldeia global não significou um espaço comum para o contato entre as diferentes culturas nacionais como conformação de uma cultura universal. Longe disso. Sob bases capitalistas e impostas pelo imperialismo, o resultado foi a homogeneização, uma cultura padronizada, nivelada por baixo e posta a serviço justamente do processo de recolonização.
A onda de privatizações atingiu empresas que antes, bem ou mal, investiam na cultura. A redução do papel do Estado em áreas públicas fundamentais, como a escola, a saúde e a cultura, abriu o espaço para a invasão do capital privado. No artigo “Adeus às ilusões de autonomia da arte”, Iná Camargo Costa lembra que, com Thatcher na Inglaterra e Reagan nos Estados Unidos, durante os anos 80, “as grandes corporações multinacionais direcionaram os seus tentáculos para o negócio da arte, especialmente a ‘grande arte’. Aquela década viu o poder do dinheiro corporativo pautando a arena cultural em escala até então desconhecida. A arte passou a ser objeto de demanda não apenas como investimento financeiro, mas também como instrumento de propaganda institucional por um set or que até então era visto como inteiramente ignorante no assunto e indiferente a ele” [8].
Rompeu-se até mesmo a concepção burguesa de que o acesso à cultura é um direito democrático de todos os “cidadãos”. Agora a cultura passava a ser comandada pelas empresas e bancos. Saem os artistas, entram os homens de negócios. Bancos e corporações indicam seus próprios curadores, atribuições antes restritas aos museus e galerias de arte públicos. Formam seus próprios departamentos de arte ou transformaram as galerias e museus em veículos próprios de relações públicas. A tal ponto que hoje o selo de qualidade de uma obra artística é dado pelo número de logotipos de empresas que ela estampa em seu material de divulgação.
O patrocínio cultural foi a grande jogada, que vem junto com a chamada responsabilidade social. Estudos da Business for Social Responsibility, organização criada em 1992 nos EUA, indicam que as empresas com maior grau de responsabilidade social são, no longo prazo, as mais lucrativas.
A IBM, já em 1983, lançou o projeto Encontro Marcado com a Arte, que consistia em levar escritores às universidades para falar aos alunos. Ao mesmo tempo, começou a patrocinar projetos em teatro, dança e música, como o Balé Bolchoi, Jazz de Montreal, All Star Gala e Montreal Street Dance Chicago. Em 1999 implementou o projeto Novo Canto, no qual artistas renomados participavam de shows de lançamento de um novo talento da MPB, reforçando a associação da marca à inovação. Já o BankBoston prefere usar a música erudita como marketing. Os Concertos BankBoston, criados em 1992, vêm ocorrendo ano a ano por meio de assinatura paga e alguns concertos gratuitos. Além de poder adquirir assinaturas para a série com antecedência, os correntistas do banco têm um desconto sobre seu preço. O alvo da Fiat são os consumidores jovens. Criou em 1997 o programa Fiat para os Jovens, reforçando a imagem de jovialidade da empresa e de seus produtos no Brasil. Altas somas são envolvidas nesses projetos. O orçamento médio anual do programa cultural do BankBoston é de US$ 1 milhão. A Coca-Cola atua pesado, desde 1990, na área de educação, destinando mais de US$ 100 milhões para projetos educacionais em vários países, incluindo o Brasil.
Microsoft, Nokia, Intel, Disney, McDonald’s, AT&T e Ford são outras multinacionais que investem em cultura em toda América Latina , sobretudo no Brasil. A Ford, por meio da Ford Foundation, patrocina as artes e projetos educacionais, visando “identificar-se com a comunidade”, ao mesmo tempo em que exerce uma perseguição sistemática contra os ativistas sindicais e não hesita em demitir operários em momentos de crise. A retórica da Ford não condiz com suas ações: “Ao nos esforçarmos para sermos um contribuinte líder na busca de um mundo mais sustentável, a cidadania corporativa tornou-se parte integrante de cada decisão e ação que fazemos. Acreditamos que a cidadania corporativa é demonstrada em quem somos como empresa, como dirigimos nosso negócio, como cuidamos de nossos func ionários e como interagimos com nosso mundo de forma geral. É nossa aspiração estar entre as empresas mais respeitadas, admiradas e confiáveis do mundo” [9].
A Shell está no Brasil há mais de 80 anos e há 50 atua na área da cultura. “Esse casamento da empresa com a atividade artística produz resultados incontestáveis. Não que a Shell dependa desse tipo de iniciativa para vender seus produtos, mas, como qualquer empresa, ela precisa ser bem vista, ter uma imagem simpática junto à população. O apoio à cultura contribui muito para que a imagem da empresa seja positiva”. (João Madeira, Gerente de Comunicação)[10]. No entanto, a Shell não está nem um pouco preocupada com a defesa do meio ambiente. Se não, não seria uma das empresas de petróleo que mais polui o lençol freático nas regiões onde está instalada. Recentemente dois escândalos envolvendo a empresa foram amplamente divulgados: o envenenamento da água em Paulínia, na região de Campinas, e na Vila Carioca, em São Paulo , provocando inclusive a morte de adultos e crianças.
A arte também serviu para dar uma cara “mais humana” ao processo de privatização das empresas estatais dos anos 90. A privatização da telefonia trouxe a espanhola Telefonica, que só em 1999 investiu R$ 5 milhões em projetos culturais e ficou conhecida em pouco tempo, patrocinando exposições que já traziam grande potencial de mídia, como Picasso, Esplendores da Espanha, Raoul Dufy e De Picasso a Barceló. Foi o caso também do Banco Santander, que comprou o Banco Geral do Comércio, o Banco do Nordeste, o Meridional e 60% das ações do Banespa e em 2001 fundou o Santander Cultural em Porto Alegre para promover atividades culturais e artísticas. Nesses casos específicos, a arte ajudou a viabilizar uma política de apropriação de empresas estatais que jogou na rua milhões de trabalhadores no Brasil e em toda América Latina.
A White Martins recebeu em 1997 o prêmio Patrono da Cultura Brasileira conferido pelo Ministério da Cultura por serviços prestados ao “resgate” de nossa cultura. Segundo a revista Marketing Cultural, a empresa, que investe em projetos culturais desde a época da Lei Sarney, conseguiu um retorno em matéria de imagem que lhe teria custado 50% a mais do que o total investido nos projetos.
Nessa relação promíscua entre capital e cultura, as empresas escolhem o tipo de projeto que vão patrocinar. E, com isso, a arte que mais se reproduz hoje é aquela feita à imagem e semelhança da burguesia e de seus valores. Não é difícil ver gerentes de empresas opinando e decidindo sobre arte, rejeitando este ou aquele tema controverso ou interferindo em cenas de peças teatrais, forrando o espaço de uma exposição fotográfica com logotipos, veiculando longos comerciais antes do início de uma peça teatral ou inserindo trechos de divulgação dos seus produtos em filmes e outras obras.
Os artistas e produtores culturais passaram a viver em função das empresas. O modelo para as atividades culturais segue à risca os planos promocionais de vendas das empresas: 1) o projeto gera sinergia com a campanha publicitária? 2) qual a verba de divulgação prevista para o projeto? 3) há flexibilidade para implementar promoções associadas? 4) como poderiam ser geradas atividades promocionais que reforcem a mensagem do patrocínio e a associação do projeto ao nome da empresa? 5) terá a participação de personalidades relacionadas ao tema proposto? [11]. Enfim, requisitos que, na maioria das vezes, não se enquadram no projeto, mas o artista acaba fazendo adaptações para poder receber o financiamento. Essa prática já está tão estendida que vem servindo de modelo para todo tipo de projeto cultural, inclusive aqueles que requerem verbas públicas. Ou seja, as empresas e bancos estão reestruturando a área cultural segundo sua imagem e semelhança.
Além do retorno em imagem, as empresas que patrocinam as artes são tratadas como beneméritas. A arte dignifica o que é indigno: o capital, a exploração do trabalhador, o saque das riquezas, o lucro desmedido, enfim, todas as mazelas do capitalismo são “perdoadas” quando recobertas pela aura de uma sinfonia de Mozart, pelas cores vibrantes de uma pintura de van Gogh, com as formas inusitadas de um Picasso ou o ritmo alucinante de uma banda de rock.
No Brasil, a privatização da cultura por meio da renúncia fiscal
Durante o regime militar no Brasil teve início um processo acelerado de institucionalização da cultura. Em 1970 foram criadas as secretariais estaduais de Cultura e em 1985 surgiu o Ministério da Cultura, como o objetivo fazer cumprir o art. 215 da Constituição: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
Mas esse papel foi transferido para a iniciativa privada. Sob a bandeira da democratização da cultura, promulgou-se em 1986 a chamada Lei Sarney (7.505/86), que deu um salto na privatização da cultura ao introduzir o princípio da renúncia fiscal. As empresas ficam isentas de pagar imposto de renda sobre o montante investido em projetos culturais. Filão mais rico, impossível. Os bancos e grandes corporações passaram a investir em cultura um capital que não sai de seus próprios cofres, mas dos cofres públicos. E quanto maior o evento, maior o retorno financeiro e publicitário. Com isso, generalizou-se a política de megaeventos, festivais, concursos, grandes musicais estilo broadway, importação de grandes espetáculos da Europa e Estados Uni dos, filmes sendo feitos para disputar o Oscar, construção de luxuosas salas de espetáculo.
No governo Collor, a partir de 1990, mais um golpe nas instituições públicas de cultura. O Ministério da Cultura deixou de existir. Foi substituído por uma Secretaria, subordinada diretamente ao presidente da República. As diversas fundações das artes (cinema, artes cênicas, patrimônio histórico e outras) foram simplesmente extintas. Os gastos públicos com o setor cultural foram drasticamente reduzidos, passando de 200 milhões de reais em 1990 para 131 milhões em 1991. Em seu lugar foi promulgada uma nova lei federal de “incentivo” à cultura, mais favorável aos empresários privados que a Lei Sarney. Intitulada Lei Rouanet (8.313/1991), permite abater até 80% do capital aplicado em projetos culturais. Em 1999 o governo ampliou esse limite para 100% (lei 9.874/99).
O papel do governo Lula
No Brasil, Lula representa a vanguarda nessa política. Sem uma política que contemple a enorme diversidade cultural e artística de um país imenso como o Brasil, o governo Lula vem esvaziando progressivamente as instituições do Estado e transferindo para as empresas o gerenciamento da cultura.
Existe um verdadeiro monopólio por parte do empresariado privado em relação à cultura. O Sesc, entidade que reúne os empresários do setor do comércio, montou uma rede de centros culturais luxuosos aos quais só têm acesso as produções que se enquadram em uma extensa lista de exigências. Basicamente o que isso tem provocado é o empresariamento da produção cultural, com a conseqüente dissolução das pequenas produções independentes.
A cultura e a arte no Brasil, na gestão Lula, caminham ao sabor do mercado e dos interesses políticos do governo no momento. Como seu principal instrumento político de propaganda, Lula promoveu a Petrobras como empresa amiga da cultura, e hoje ela investe pesado em eventos culturais, festas folclóricas, festivais de cinema, premiações em teatro, com ampla cobertura da mídia. São milhões gastos em atividades culturais, sem que os trabalhadores tenham a menor noção de como isso é feito. Assim, a empresa funciona como principal cabo eleitoral de Lula, que conta também com a colaboração inestimável de grandes artistas, colocados em postos-chave da administração pública.
É uma política dúbia, ou seria mais claro dizer que o governo não tem uma política cultural, não tem um projeto definido. Enquanto um banco como o Bradesco, por exemplo, “patrocina” a milionária companhia canadense Cirque du Soleil, a arte circense no Brasil está jogada no limbo há décadas. O Bradesco usa o dinheiro público, via renúncia fiscal, e cobra 200 reais o ingresso, ocupando as melhores salas de espetáculos do país, às quais só um público seleto tem acesso.
Ao mesmo tempo, o governo faz populismo com a cultura, por meio de políticas assistencialistas nos bairros pobres, onde as Ongs, entidades religiosas e fundações ligadas ao imperialismo levam uma política de convivência cidadã e programas que geram muita propaganda para o governo, mas pouca sustentação ao trabalho artístico.
Sem condições de disputar a atenção do público com os milionários eventos patrocinados pelas empresas, milhões de artistas simplesmente abandonam o barco.
Na área do teatro, por exemplo, existem hoje, só no Estado de São Paulo, mais de cem grupos teatrais em plena atividade. Para se ter uma idéia, a edição da Lei de Fomento 2007 analisou 105 projetos inscritos, dos quais 60 foram considerados aptos, mas apenas 11 foram contemplados, devido à limitação orçamentária. Os demais estão simplesmente paralisados.
Não há continuidade no trabalho teatral, porque nada garante aos grupos essa continuidade. E isso prejudica também a pesquisa e a descoberta de novas linguagens. Prejudica o avanço da arte teatral, prejudica o processo de formação de público. As pesquisas teatrais hoje, tanto no âmbito acadêmico quanto nos palcos, vêm tratando sobretudo de entender o que ocorreu com o teatro no último período, abalado por tantas e tão imensas transformações no contexto social e político mundial.
Se partimos da virada do milênio, temos aí uma retrospectiva de montagens que se preocupam sobretudo em abordar essas transformações, nem que para isso tenham de lançar mão de conceitos estéticos já conhecidos, porque não há verba ou qualquer incentivo para a pesquisa teatral e a descoberta de novas linguagens. Algo parecido ocorre no cinema, onde apenas alguns poucos diretores conseguem apoio das empresas para rodar seus filmes. As chances são cada vez mais restritas e o “padrão Hollywood” domina as produções nacionais.
Essa é a própria negação da cultura. Ao contrário do que dizem os teóricos da pós-modernidade, que proclamam “tudo é cultura”, hoje em dia “nada é cultura”. Porque o que predomina é a cultura comercial, que dilui as diferenças e impede a criação, quando na verdade a cultura é o que move o indivíduo para longe da indiferença, da indistinção; cultura é uma construção que só pode proceder pela diferenciação. Seu oposto é a diluição. O que faz o cinema comercial, por exemplo – e com ele toda a não-cultura – é promover a diluição, para que possa se multiplicar comercialmente, como mercadoria[12].
Em defesa da Cultura
Quando, nos anos 50, os teóricos da Escola de Frankfurt denunciaram a industrialização da cultura pelo capitalismo, Theodor Adorno disse que era preciso enfrentar esse processo e que “a luta contra a cultura de massa só poderia ser levada adiante se mostrada a conexão entre a cultura massificada e a persistência da injustiça social”.
Predominam na área da cultura hoje as relações monopolistas, com grandes empresas repartindo entre si as áreas de influência – Ford, na Educação, IBM e BankBoston na música erudita, a Telefônica nas artes plásticas, a Petrobras no cinema e teatro. Essas áreas são controladas por uma oligarquia financeira que dá as cartas e impõe as regras do jogo, forma seus lobbies no Congresso, tem seus políticos de confiança e pressiona o governo para mudar as leis de patrocínio de acordo com seus interesses no momento.
Temos, por outro lado, a transformação da arte em seu inverso. De expressão de emoções, de libertação ou mesmo de conscientização humana, a arte vem sendo usada para encobrir a exploração, a opressão e a dominação dos povos.
Essa relação cada vez mais intima entre cultura e empresa, entre arte e capital, deu origem a todo tipo de interpretação. Alguns vêem a indústria cultural como progressiva, porque seria uma maneira de democratizar a arte; a população passaria a ter acesso amplo à cultura, auxiliada pelos avanços tecnológicos. Outros falam em mundialização da cultura, já não mais no sentido de internacionalização ou cultura globalizada, mas um fenômeno social total que permeia o conjunto das manifestações culturais, uma totalidade cultural. Hoje nós não teríamos mais uma somatória de culturas nacionais, mas uma totalidade, uma cultura-mundo, um cultura industrializada. “Uma cultura mundializada corresponde a uma civilização cuja territorialidade se globalizou”, diz Renato Ortiz. Apesar de reconhecer que a fabricação industrial da cultura (filmes, séries de TV etc) e a existência de um mercado mundial exigem uma padronização dos produtos, Ortiz não vê aí uma homogeneização, uma padronização, porque continuaria havendo espaço para todos. “Uma civilização promove um padrão cultural sem com isso implicar a uniformização de todos”[13].
Essa concepção, que já está bem arraigada hoje em dia, dá a entender que hoje temos uma mundialidade cultural, como sinônimo de unidade, como se a cultura fosse neutra, e pudesse ser vista separada de suas condições materiais de produção e isolada das relações entre as classes. Na verdade, a indústria cultural funciona como tentativa de neutralizar a luta de classes, de apagar as diferenças entre elas, como se fosse um vínculo que une a todas as pessoas, independente da sua localização social. Todos vêem as mesmas novelas na TV, compram os mesmos quadros, ouvem os mesmos discos. E com isso se aprofunda o descompasso entre a sofisticação tecnológica na área cultural e a miséria cada vez mais generalizada entre as massas. Crescem os setores marginalizados de tudo, até mesmo dos miseráveis produtos da indústria cultural. A profundam-se as discriminações contra os negros, os imigrantes, as mulheres, os homossexuais. O que temos, de verdade, é uma degradação generalizada da arte e uma subordinação total da cultura pelo capital. Se isso é grave no mundo inteiro, mas mais grave ainda nos países oprimidos e saqueados pelo imperialismo. Na cultura também se manifesta o caráter de classe. A decadência da criação artística é inseparável do progresso da civilização burguesa, disse Marx. Tudo o que é necessário e progressivo para o estabelecimento de uma cultura verdadeiramente humana – romper com o isolamento entre os povos para que a produção cultural de um país se torne patrimônio comum de todos – se volta contra a cultura. Sob a dominação imperialista, essa suposta mundialização da cultura acaba sendo um arremedo de cultura-mundo, uma caricatura de aldeia global, porque é assen tada na opressão dos povos, na miséria cultural, no analfabetismo de milhões de pessoas, mantidos na ignorância e alienação sobre sua verdadeira condição humana.
A cultura e a necessidade da revolução socialista
Como Marx, temos de ter uma visão da cultura estreitamente vinculada ao processo da revolução socialista, e perceber que a disparidade entre a situação da cultura no capitalismo e as enormes possibilidades abertas a ela pelo desenvolvimento das forças produtivas da sociedade se deve às contradições do “período burguês da história”, como disse Marx.
Essa situação torna imperiosa a luta dos artistas em defesa da arte e da democratização da cultura como uma luta contra o imperialismo, contra os efeitos da recolonização de nossos países, contra os monopólios e as políticas frentepopulistas do governo. Já nos anos 30, o grande dramaturgo alemão Bertold Brecht chamava a atenção dos artistas para essa necessidade, porque “as grandes engrenagens orientam a criação artística segundo seus próprios critérios. Mas entre os intelectuais persiste a ilusão de que elas querem a valorização do seu trabalho e, longe de exercer influência, esse fenômeno, julgado secundário, permite que o seu trabalho é que a exerça. Essa falha de visão dos compositores, escritores e críticos tem enormes consequências, às quais se presta, g eralmente, pouca atenção. Convencidos de possuir o que realmente os possui, defendem uma engrenagem que não controlam mais; um aparelho que não existe mais, como acreditam, a serviço dos criadores, mas que, pelo contrário, voltou-se contra eles e, portanto, contra sua própria criação. O trabalho dos criadores não é mais do que um trabalho de fornecedores, e assiste-se ao nascimento de uma noção de valor cujo fundamento é a capacidade da exploração comercial. (...)
Essa luta dos artistas tem de ser parte da luta de toda a classe trabalhadora em defesa da cultura, não apenas em defesa do emprego e do salário. Sua luta econômica tem de vir associada à luta política e cultural, porque a dominação cultural por parte do imperialismo é parte integrante da exploração econômica da classe trabalhadora.
Enquanto a burguesia for a classe dominante e proprietária dos meios de produção, não haverá saída para a arte. “O problema reside no fato de as engrenagens não pertencerem à comunidade, dizia Brecht. Os meios de produção não são ainda propriedade daqueles que produzem, de modo que o trabalho tem a característica de verdadeira mercadoria, submetida às leis de mercado – impossível de ser fabricada sem os meios de produção (as engrenagens)”[14].
Para Rosa Luxemburgo, “O proletariado, nada possuindo, não pode, na sua marcha para adiante, criar uma cultura nova em folha, enquanto conservar-se nos quadros da sociedade burguesa. Tudo o que se pode fazer hoje é proteger a cultura da burguesia contra o vandalismo da reação burguesa” (1903).
O proletariado não terá tempo de construir a sua própria cultura, ao derrotar a sociedade de classes. Mas a Revolução Russa, no pouco tempo que sobreviveu antes da burocratização stalinista, é um exemplo para o mundo inteiro de como a socialização dos meios de produção pode servir ao pleno desenvolvimento artístico.
O contraste entre a situação real da arte sob o capitalismo e as enormes possibilidades abertas a ela pelo desenvolvimento das capacidades produtivas da sociedade é meramente uma instância das contradições sociais, do período burguês da história, na expressão de Marx. E a situação é tão grave que entre os artistas o sentimento geral é de frustração, porque não vêm saída para a arte. No entanto, o materialismo histórico já mostrou que no desenvolvimento da humanidade, o avanço e o retrocesso sempre estiveram relacionados. É com essa concepção dialética da história que temos de olhar para arte e perceber que a decadência da criação artística de hoje é inseparável do desenvolvimento da sociedade burguesa. Ela interpôs um verdadeiro abismo entre o trabalho manual e o intelectual, e qualificou todo trabalho intelectual e artístico de trabalho superior. Mas esses trabalhos superiores também se converteram em mercadorias, perdendo sua velha aura, como disse Walter Benjamin. Desde os seus primórdios, o capitalismo atribui um valor puramente comercial ao trabalho dos artistas, dos cientistas, dos escritores. Para Marx, esse “desprezo” com que a sociedade burguesa trata a arte se converte em um poderoso fator revolucionário. “O nihilismo do modo burguês de produção é, ao mesmo tempo, seu maior mérito histórico. Tudo o que é sagrado é profanado, e os homens, ao final, se vêm forçados a considerar serenamente suas condições de existência e suas relações recíprocas. É necessário e progressivo destruir ilusões e arrancar pela raiz os vínculos que unem o homem às antigas formas sociais. Essa é uma condição necessária para o estabelecimento de uma cultura humana verdadeiramente universal”.
Trotsky via a arte como espelho da realidade. A arte que temos hoje como dominante é a arte feita à imagem e semelhança do capital, e sendo usada pela burguesia para encobrir a verdadeira realidade em que vivem milhões e milhões de trabalhadores e camponeses, milhões de pessoas marginalizadas e oprimidas no mundo inteiro. Mas Trotsky também disse que a arte pode ser, além do espelho, o martelo que ajudará a transformar essa realidade. E, como martelo, ela refletirá a necessidade do homem que deseja a sua emancipação, refletirá a angústia do povo que luta para se libertar da exploração, da miséria e da alienação.
Por isso, a questão do futuro da arte não é uma questão abstrata, mas um problema da classe trabalhadora, incluindo os artistas e todos os trabalhadores da cultura, que precisam se unir não apenas na luta econômica e política, mas igualmente na defesa da cultura. E defender a cultura é antes de mais nada combater o imperialismo, destruir a sociedade burguesa e construir o socialismo, para terminar com a disparidade entre o desenvolvimento social e o desenvolvimento artístico, abrindo os horizontes para o florescimento amplo de uma arte verdadeiramente humana e livre.
[1] Leon Trotsky, Teses sobre o papel mundial do imperialismo norte-americano, publicadas em Documentos de Fundação da IV Internacional. Congresso de 1938. Ed. Sunderman.
[4] Sobre a política do imperialismo para a Educação no Brasil, indicamos a leitura do excelente artigo de Roberto Leher intitulado “Um novo Senhor da educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do Capitalismo”, publicado na Revista Outubro n.3, de 1999.
[6] Alvin Toffler escreveu A Terceira Onda e outros livros exaltando a globalização. Citado por Renato Ortiz em Mundialização e Cultura, Ed. Brasiliense.
[7] José Welmovick, “América Latina na Virada do Século: Revolução ou Colônia”. Revista Marxismo Vivo n.2, outubro de 2000.
[8] Publicado no livro A Luta dos Grupos Teatrais de São Paulo por Políticas Públicas para a Cultura, de Iná Camargo Costa e Dorberto Carvalho.
O Grande Sonho
Leon Trotsky
Fevereiro de 1917. Começa a revolução mais violenta de todos os tempos. Em uma semana, a sociedade se desfaz de todos os seus dirigentes: o monarca e seus homens da lei, a polícia e os sacerdotes; os proprietários e os gerentes, os oficiais e os amos. Não há cidadão que não se sinta livre para decidir em cada momento sua conduta e seu porvir. Surge, então, das profundezas da Rússia, um imenso grito de esperança. Nessa voz se mescla a voz de todos os desesperados, humilhados e desamparados. Em Moscou, os trabalhadores obrigam os seus donos a aprender as bases do novo direito operário. Em Odessa, os estudantes ditam ao seu professor um novo programa de história das civilizações; no exército, os soldados deixam de obedecer aos seus superiores. Ninguém jamais havia sonhado com uma revolução assim. Agora esse sonho circula pelas veias de todas as almas desesperadas e desamparadas deste planeta. O grande sonho. A grande debilidade de muitos “revolucionários” consiste em sua absoluta incapacidade de entusiasmar-se, de elevar-se sobre o nível rotineiro das trivialidades, de fazer surgir um vínculo vital entre eles e os que o rodeiam. Aquele que não pode incendiar-se, não pode incendiar sua vida e nem a dos demais. A fria malevolência não é o bastante para apoderar-se da alma das massas. Muitos revolucionários contemplaram a revolução com um invejoso espanto. É que a vida pessoal dos revolucionários dificulta sua percepção dos grandes acontecimentos dos quais participa. Mas as tragédias das paixões individuais exclusivas são demasiado insípidas para o nosso tempo. Porque vivemos em uma época de paixões sociais. A grande tragédia de nossa época consiste no choque da personalidade individual com a comunidade. Para alcançar o nível de heroísmo e custear o terreno dos grandes sentimentos que a vida nos dá é necessário que a consciência se sinta ganha por grandes objetivos. Toda catástrofe individual ou coletiva é sempre uma pedra de toque, pois desnuda as verdadeiras relações pessoais e sociais. Hoje em dia é necessário provar este mundo. O poeta, por exemplo, sentiu-se independente do burguês e até enfrentou-se com ele. Mas quando o assunto foi a revolução, mostrou-se um parasita até a medula dos ossos. A psicologia do indivíduo assim mantido e dedicado a ser um sanguessuga humano não tem rastros de bondade de caráter, respeito ou devoção. Hoje em dia os “mocinhos” estudam ainda em livros às custas do sacrifício dos explorados, se exercitam em periódicos e criam “novas tendências”. Mas quando uma revolta ocorre seriamente, em seguida descobrem que a arte se encontra nas cabanas, nos buracos mais recônditos, onde fazem ninho os cupins. É preciso derrubar a burguesia, porque é ela quem fecha o caminho à cultura. A nova arte não só mudará a vida, mas lhe arrancará a pele. Amar a vida com o afeto superficial do diletante não é um grande mérito. Amar a vida com os olhos abertos, com um sentido crítico cabal, sem ilusões, tal como nos aparece, com o que oferece, essa é a proeza. Nossa proeza também é realizar um apaixonado esforço por sacudir aqueles que estão entorpecidos pela rotina, obrigar-lhes a abrir os olhos e ver aquilo que se aproxima”.