As Ideias com as Quais nos Afinamos



Arte e Política (excertos) (1938)

Leon Trotsky

1. A arte é uma expressão da necessidade humana de uma vida completa e harmoniosa, isto é, da necessidade dos maiores bens que a sociedade de classes nega à maioria. É por isso que o protesto contra a realidade, seja ele consciente ou inconsciente, ativo ou passivo, otimista ou pessimista, sempre faz parte de uma obra de arte verdadeiramente criativa.

2. O declínio da sociedade burguesa significa uma exacerbação insuportável das contradições sociais, que inevitavelmente se transformam em contradições pessoais, trazendo à tona uma necessidade cada vez maior de uma arte liberadora. Mais que isso, o capitalismo declinante é inteiramente incapaz de oferecer condições para o desenvolvimento de tendências artísticas que correspondam, ainda que minimamente, à nossa época. Ele teme supersticiosamente cada nova palavra, pois agora não se trata mais de reformas do capitalismo, mas de vida ou morte. As massas vivem oprimidas. A boemia oferece uma base social muito limitada. Por isso tendências novas assumem um caráter cada vez mais violento, alternando esperança e desespero.

3. A arte não pode fugir à crise, nem se isolar. A arte não pode se salvar sozinha. Ela vai apodrecer inevitavelmente – como a arte grega apodreceu sob as ruínas de uma cultura fundada sobre a escravidão – a menos que a sociedade atual seja capaz de se reconstruir. Esta tarefa tem um caráter essencialmente revolucionário. É por isso que a função da arte em nossa época é determinada por sua relação com a revolução.

4. Arte, cultura e política precisam de uma perspectiva nova. Sem ela, a humanidade não se desenvolverá. Mas nunca as perspectivas foram tão ameaçadoras e catastróficas como agora. Por isso o pânico é o estado mental predominante da intelligentsia desnorteada.

5. Nunca uma idéia progressista começou com uma “base de massas”, ou não seria uma idéia progressista. Uma idéia só alcança as amplas massas em seu último estágio – desde que seja uma resposta às necessidades progressistas. Todos os grandes movimentos começaram como “dissidências” de movimentos anteriores.

6. Quando uma tendência artística esgota as suas forças criadoras, dissidências criativas se separam dela por terem a capacidade de olhar o mundo com novos olhos. Quanto mais os pioneiros ousam em suas idéias e ações, mais acidamente se opõem à autoridade estabelecida e apoiada em uma “base de massas” conservadora, mais os conservadores, céticos e esnobes tendem a ver os pioneiros como excêntricos impotentes e “dissidentes anêmicos”. Mas, em última análise, errados são os convencionais, céticos e esnobes – e a vida os ultrapassa.

7. Um partido verdadeiramente revolucionário não pretende nem é capaz de assumir a tarefa de “dirigir” e muito menos de comandar a arte, tanto antes quanto depois da tomada do poder. Assim como a ciência, a arte não está à espera de ordens; ao contrário, por sua essência, não as tolera. A criação artística tem suas próprias leis – mesmo quando está conscientemente a serviço de um movimento social. A verdadeira criação intelectual é incompatível com mentiras, hipocrisia e espírito conformista. A arte só poderá ser uma forte aliada da Revolução na medida em que permanecer fiel a si mesma. Poetas, pintores, escultores e músicos encontrarão sozinhos os seus próprios métodos e modos de se aproximar dela, se a luta pela liberdade das classes e povos oprimidos dispersar as nuvens do ceticismo e do pessimismo que cobrem o horizonte da humanidade.

8. “Independência” e “liberdade” representam um valor real. Por isso é necessário defendê-las com a espada, ou pelo menos com um chicote na mão. Toda tendência artística ou literária nova começou com um “escândalo”, quebrando a louça velha e respeitável, e desafiando muitas autoridades estabelecidas. Isto não acontecia só para fins de publicidade (que também contavam). O fundamental é que artistas e críticos literários tinham algo a dizer. Eles tinham amigos e inimigos, eles lutaram e assim demonstraram seu direito de existir.


Seleção e tradução do inglês “Art and Politics in our Epoch”.
Iná Camargo





Intelligentsia e Socialismo (1910)

Leon Trotsky

(Tradução: Daniel Puglia)

Há dez ou, até mesmo, seis ou sete anos, os defensores da escola de sociologia subjetiva russa (os “Socialistas Revolucionários”) poderiam com êxito ter utilizado para seus propósitos o mais recente panfleto do filósofo austríaco Max Adler. Entretanto, nos últimos cinco ou seis anos, passamos por uma “escola de sociologia” bastante completa e objetiva, e suas lições estão escritas sobre nossos corpos em cicatrizes tão expressivas que nem a mais eloqüente glorificação da intelligentsia, mesmo partindo da pena “marxista” do senhor Adler, poderá ajudar o subjetivismo russo. Ao contrário, o destino dos nossos subjetivistas é o mais sério argumento contra as alegações e conclusões de Max Adler.        

O assunto do panfleto é a relação entre a intelligentsia e o socialismo. Para Adler isto não é meramente uma questão de análise teórica: é também de uma questão de consciência. Ele deseja convencer. Seu panfleto, baseado numa palestra proferida a estudantes socialistas, é recheado com fervorosa  convicção. O espírito de proselitismo está presente de cabo-a-rabo, dando especial nuance a idéias que não são exatamente novas. Para atrair a intelligentsia em direção aos ideais dele, Adler e, para conquistá-la a qualquer preço, o desejo político prevalece sobre a análise social, transferindo ao panfleto seu tom particular – e determinando suas fraquezas.   

O que é a intelligentsia? É claro que Adler não define esse conceito em termos morais, mas sim sociais: a intelligentsia não é um agrupamento sacerdotal que se mantém unido devido a algum juramento histórico; na verdade, é o estrato social que engloba todos os tipos de ocupações envolvendo “trabalho cerebral”. Por mais difícil que seja estabelecer um nítida separação entre o trabalho “manual” e o “cerebral”, os aspectos sociais gerais da intelligentsia são bastante claros, sem a necessidade de se ater demasiadamente a detalhes. A intelligentsia constitui toda uma classe – Adler a chama de um grupo intra-classe, mas em essência tal diferenciação não existe – dentro da estrutura da sociedade burguesa. Para ele, trata-se da seguinte questão: quem ou qual forma de pensar tem o legítimo direito de ganhar a alma dessa classe? Qual ideologia lhe é obrigatoriamente intrínseca, como um resultado das próprias funções sociais que tal classe desempenha? Adler responde: a ideologia do coletivismo. Ao mesmo tempo, nosso autor não fecha os olhos para o seguinte: considerando-se que não seja diretamente hostil às idéias coletivistas, na melhor das hipóteses a intelligentsia européia permanece distante e indiferente em relação à vida e às lutas das massas trabalhadoras. Mas Adler afirma que não deveria ser assim; não existem fundamentos objetivos para que isso ocorra. E se posiciona firmemente contra os marxistas que negam a existência de condições gerais para uma adesão em massa da intelligentsia ao socialismo.

 “Existem”, declara em seu prefácio, “fatores suficientes – embora não puramente econômicos, mas advindos de outra esfera – que podem influenciar todos os componentes da intelligentsia, à parte sua própria condição de vida proletária, funcionando como motivos adequados para que se juntem ao movimento dos trabalhadores socialistas. Basta que a intelligentsia seja conscientizada acerca de sua própria posição na sociedade e da natureza essencial desse movimento”. Quais são esses fatores? “Uma vez que a importância primordial e, sobretudo, a possibilidade do livre desenvolvimento dos interesses espirituais”, escreve Adler, “são condições essencialmente vitais para a intelligentsia, então os interesses teóricos e os econômicos são igualmente relevantes para o modo de vida dessa mesma intelligentsia. Desse modo, se os fundamentos para que ela se alie ao movimento socialista tiverem de ser buscados principalmente fora da esfera econômica, isto é explicável tanto pelas condições ideológicas específicas da existência do trabalho mental, quanto pelo conteúdo cultural do socialismo” (p. 7). Independentemente da natureza de classe do movimento como um todo (afinal, é apenas um caminho!), independentemente de sua imagem político-partidária cotidiana (afinal, é apenas um meio!), o socialismo por sua própria essência, como um ideal social universal, significa a libertação de todas as formas do trabalho mental em relação a quaisquer limitações ou aprisionamentos sócio-históricos. Esta premissa, esta visão, ergue a ponte ideológica que a intelligentsia da Europa pode, e deve, atravessar para chegar ao campo da Social Democracia.                      

Este é o ponto de vista básico de Adler, desenvolvido ao longo de todo o panfleto. Sua falha radical, que salta aos olhos, é sua natureza não-histórica. Os fundamentos sociais, em que Adler tanto confia para que a intelligentsia ingresse nos campos do coletivismo,  existem já há muito tempo;  e no entanto em nenhum país europeu ocorre um traço sequer de um movimento de massas da intelligentsia em direção à Social Democracia. É claro que Adler vê isso tão bem quanto nós. Mas ele prefere ver a razão do alheamento da intelligentsia em relação ao movimento das classes trabalhadoras na seguinte circunstância: a intelligentsia não entende o socialismo. Em certo sentido isso é verdade. Mas neste caso o que explicaria a persistência dessa falta de compreensão, uma vez que a intelligentsia tem a capacidade de entender muitos outros assuntos extremamente mais complicados? Claramente isso não se deve à fraqueza de sua lógica teórica, mas ao poder de elementos irracionais na psicologia de sua classe. O próprio Adler fala sobre isso no capítulo Bürgerliche Schranken des Verständnisses (Limites Burgueses ao Entendimento), que é um dos melhores no panfleto. Mas ele acredita, ele espera, ele tem certeza – e aqui o pregador prevalece sobre o teórico – que a Social Democracia européia irá superar os elementos irracionais na mentalidade dos trabalhadores cerebrais se, e somente se, reconstruir a lógica de suas relações com tais trabalhadores. A intelligentsia não compreende o socialismo porque este lhe aparece na forma rotineira e cotidiana como um partido político, um dentre tantos, exatamente como outros. Mas se à intelligentsia for demonstrada a verdadeira face do socialismo, como um movimento cultural de alcance mundial, este será reconhecido como o representante das melhores esperanças e aspirações dela, a intelligentsia. Assim acredita Adler.

Até este ponto não examinamos se, de fato, no que se refere à intelligentsia como classe, as necessidades puramente culturais (desenvolvimento da técnica, da ciência, da arte) são na realidade mais poderosas que outras sugestões de classe provenientes da família, da escola, da igreja e do Estado, ou ainda, mais poderosas que a voz dos interesses materiais. Mas mesmo se aceitarmos isso para fins de argumentação, se concordarmos em enxergar a intelligentsia sobretudo como uma corporação de sacerdotes da cultura que, até o momento, simplesmente não conseguiu comprender a ruptura socialista com a sociedade burguesa como a melhor forma de servir aos interesses da cultura, enfim, se aceitarmos isso, a questão ainda mantém toda a sua força: pode a Social Democracia da Europa ocidental oferecer à intelligentsia, teórica e moralmente, algo mais convincente ou mais atrativo do que foi oferecido até agora?           

Há várias décadas o coletivismo tem feito o som de suas lutas ecoar pelo mundo. Milhões de trabalhadores se uniram durante esse período em organizações políticas, sindicais, cooperativistas, educacionais e outras. Uma classe inteira ascendeu das profundezas da vida e forçou seu caminho no sacrossanto reino da política, visto até então como reserva privada das classes proprietárias. Diariamente a imprensa socialista – teórica, política, sindical – reavalia valores burgueses, grandes e pequenos, a partir da perspectiva de um novo mundo. Não existe uma única questão da vida cultural e social (o casamento, a família, a educação, a escola, a igreja, o exército, o patriotismo, a saúde pública, a prostituição) em que o socialismo não tenha contraposto sua visão à visão da sociedade burguesa. Ele fala todas as línguas do mundo civilizado. Trabalham e lutam nas fileiras do movimento socialista pessoas com diversas mentalidades e temperamentos, com diferentes passados, conexões sociais e hábitos de vida. E se, não obstante, a intelligentsia “não entende” o socialismo, se tudo isso é insuficiente para capacitá-la, para motivá-la a compreender o significado histórico-cultural de um movimento de dimensões mundiais, então não deveríamos chegar à conclusão de que as causas dessa letal ausência de entendimento são bastante profundas e de que as tentativas de superá-la por meios literários e teóricos estão intrinsecamente fadadas ao fracasso?

Essa idéia emerge de modo ainda mais impressionante à luz da história. O maior influxo de intelectuais no movimento socialista – e isso se aplica a todos os países da Europa – ocorreu no primeiro período da existência do partido, quando ainda estava em sua infância. A primeira onda trouxe consigo os mais notáveis teóricos e políticos da Internacional. Quanto mais a Social Democracia européia cresceu, maior foi a massa de trabalhadores que se agregou a ela – e mais fraco (não apenas em termos relativos mas também em absolutos) foi o influxo de novos elementos provenientes da intelligentsia. O Leipziger Volkszeitung procurou em vão durante um longo tempo, por meio de anúncios em jornais, um trabalhador editorial que tivesse formação universitária. Aqui se impõe uma conclusão completamente contrária à de Adler: quanto mais claramente o socialismo revelou seu conteúdo, quanto mais fácil se tornou para que todas as pessoas compreendessem a missão histórica do socialismo, mais decididamente a intelligentsia se afastou dele. Se isso não significa necessariamente que ela teme o socialismo, significa contudo que certamente devem ter ocorrido mudanças sociais profundas nos países capitalistas da Europa, mudanças estas que, por um lado, impediram o congraçamento entre as pessoas com grau universitário e os trabalhadores e, por outro lado, facilitaram a ida desses trabalhadores para o movimento socialista.

Quais foram essas mudanças? Os grupos, estratos e indivíduos mais inteligentes do proletariado ingressaram e continuam ingressando na Social Democracia. O crescimento e a concentração da indústria e dos meios de transporte estão apenas acelerando esse processo. Mas, no que se refere à intelligentsia, um tipo de processo completamente diferente vem ocorrendo. O espantoso desenvolvimento capitalista das duas últimas décadas recrutou para si, de modo inquestionável, a nata dessa classe. As forças intelectuais mais talentosas, aquelas com poder de iniciativa e força de raciocínio, foram inegavelmente absorvidas pela indústria capitalista, pelos trustes, por companhias ferroviárias e bancos, todos eles pagando fantásticos salários para as funções administrativas e organizacionais. Restam para os serviços do Estado e para as repartições públicas apenas os profissionais de segunda classe, e não é à toa que os editores de jornais de todas as tendências reclamam da falta de “pessoal qualificado”. Com referência aos representantes da sempre crescente intelligentsia semiproletária – incapaz de escapar de seu modo de vida eternamente dependente e materialmente inseguro, e desempenhando funções pouco atraentes, subalternas e fragmentárias no grande mecanismo da cultura – enfim, para tal segmento da intelligentsia, os apelos de Adler relativos ao interesse pela independência cultural não têm força suficiente para direcionar suas simpatias políticas rumo ao movimento socialista.                          

Acresce ainda que para um intelectual europeu – que não considere algo psicologicamente fora de questão ingressar no coletivismo – praticamente não existe esperança de ocupar uma posição de influência e destaque nas fileiras dos partidos proletários. E essa questão tem importância decisiva. Um trabalhador chega ao socialismo como parte de um todo, junto com sua classe, da qual não tem perspectiva de escapar. Sente-se agradavelmente satisfeito com o sentimento de sua unidade moral com a massa, que o torna mais forte e confiante. Já o intelectual, por sua vez, vem ao socialismo como um indíviduo, uma personalidade, depois de romper o cordão umbilical com sua classe e inevitavelmente tentando exercer seu poder de influência como um indivíduo. E aqui ele dá de cara com vários obstáculos – e quanto mais tempo passa, maiores se tornam tais obstáculos. No princípio do movimento da Social Democracia, cada intelectual que chegava, mesmo não sendo alguém muito acima da média, conseguia um lugar no movimento da classe trabalhadora. Mas hoje em dia, nos países da Europa ocidental, o novato encontra a colossal estrutura da luta pela democracia da classe trabalhadora, uma estrutura em pleno funcionamento. Milhares de líderes trabalhistas, que foram automaticamente promovidos a partir de sua classe, constituem um sólido aparato à frente do qual se destacam honrados veteranos, de reconhecida autoridade, muitos do quais já de importância histórica. Em tais circunstâncias, somente uma pessoa excepcionalmente talentosa estaria habilitada para nutrir esperanças como candidata a uma posição de liderança – mas, em vez de pular sobre o abismo para chegar a um território desconhecido, tal pessoa vai naturalmente seguir um caminho de menos resistência, integrando-se aos domínios dos serviços prestados à indústria e ao Estado. Desse modo, e além de tudo isso, o aparato organizacional da Social Democracia também se ergue entre a intelligentsia e o socialismo, como um divisor de águas. Essa estrutura organizacional gera descontentamento entre os membros da intelligentsia que simpatizam com o socialismo, exigindo deles disciplina e auto-controle – algumas vezes devido ao “oportunismo” e, noutras vezes, contrariamente, devido ao excessivo “radicalismo” dos intelectuais supostamente engajados – o que acaba por condená-los ao papel de observadores queixosos, cujas simpatias vacilam entre o anarquismo e o nacional-liberalismo. Simplicissimus é seu mais alto bastião ideológico. Com inúmeras modificações e em variados graus, este fenômeno se repete em todos os países da Europa. Mais do qualquer outro grupo, tais pessoas são demasiado enfastiadas, demasiado cínicas, com um ar por assim dizer excessivamente blasé para que suas almas sejam tocadas por uma revelação, mesmo a mais comovente, a respeito do significado cultural do socialismo. Somente alguns raros “ideólogos” – usando essa palavra tanto no bom quanto no mau sentido – são capazes de chegar às convicções socialistas sob o estímulo do puro pensamento teórico, tomando como ponto de partida as demandas da lei, como no caso de Anton Menger, ou os requisitos da técnica, no caso de Atlanticus. Mas mesmo esses, como sabemos, geralmente não chegam tão longe quanto o movimento Social Democrata real, e a luta de classe do proletariado, em sua conexão intrínseca com o socialismo, lhes permanece como um segredo guardado a sete chaves.

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Na consideração de um ponto Adler está absolutamente certo: é impossível seduzir a intelligentsia para o coletivismo usando um programa de imediatos ganhos materiais. Mas isso não significa que seja possível seduzi-la por quaisquer outros meios, nem que interesses materiais imediatos e alianças de classe não a afetem de modo mais convincente do que todas as possibilidades culturais e históricas oferecidas pelo socialismo.

Se excluirmos aquela parcela da intelligentsia que serve diretamente às massas trabalhadoras como médicos, advogados, etc. (uma parcela que, como regra geral, é composta pelos representantes menos talentosos dessas profissões), então veremos que a parte mais importante e influente da intelligentsia depende para sua sobrevivência dos pagamentos provenientes do lucro industrial, da renda da terra ou do orçamento estatal, e portanto se configura como direta ou indiretamente dependente das classes capitalistas ou do Estado capitalista.

Considerada abstratamente, essa dependência material impediria apenas a atividade de militância política nas fileiras anti-capitalistas, mas não a liberdade espiritual em relação às classes proprietárias, empregadoras. Observando-se os fatos, entretanto, não é isso o que acontece. A natureza “espiritual” do trabalho da intelligentsia é exatamente o que forma o seu vínculo espiritual com as classes proprietárias. Gerentes de fábrica e engenheiros com responsabilidades administrativas necessariamente estão em constante antagonismo em relação aos trabalhadores, contra os quais têm de obrigatoriamente defender os interesses do capital. É óbvio que a função que desempenham molda, em última análise, seu modo de pensar e suas opiniões. Por sua vez, e a despeito da natureza mais independente de seu trabalho, médicos e advogados têm de necessariamente estar em contato psicológico com seus clientes. Enquanto um eletricista pode, dia após dia, instalar circuitos elétricos nos escritórios e aposentos de ministros, banqueiros e madames, e ainda assim permanecer ele mesmo a despeito disso, algo diferente ocorre com um médico: este é obrigado a encontrar música em sua alma e em sua voz que soe de acordo com os sentimentos de quem o contrata. Além disso, esse tipo de contato inevitavelmente acontece não apenas no topo da pirâmide da sociedade burguesa. As sufragistas de Londres contratam um advogado pró-sufrágio para defendê-las. Um médico que trata de esposas de políticos em Berlim ou das esposas dos lojistas “Social-Cristãos” de Viena, um advogado que lida com os assuntos de seus pais, irmãos e maridos, dificilmente pode permitir a si mesmo o luxo de se entusiasmar pela perspectiva cultural do coletivismo. Tudo isso também se aplica a escritores, artistas, escultores, profissionais do entretenimento, etc. – não tão direta e imediatamente, mas de modo não menos implacável. Eles oferecem ao público suas obras ou suas personalidades, dependem da aprovação e do dinheiro desse mesmo público, e então, de modo implícito ou explícito, subordinam suas realizações criativas àquele “grande monstro” que tanto desprezam: a plebe burguesa. O destino da “jovem” escola de escritores da Alemanha – já agora, aliás, bastante fragilizada – demonstra isso muito bem. O exemplo de Gorky, explicado pelas condições da época em que cresceu, é uma exceção que confirma a regra: sua inabilidade para se adaptar à degeneração anti-revolucionária da intelligentsia rapidamente minou sua “popularidade”.

Aqui é revelada uma vez mais a profunda diferença social entre as condições do trabalho cerebral e as do trabalho manual. Embora escravize os músculos e fatigue o corpo, o trabalho fabril é incapaz de sujeitar a mente do trabalhador. Todos os procedimentos adotados para exercer tal controle, tanto na Suíça como na Rússia, foram invariavelmente infrutíferos. Do ponto de vista físico, o trabalhador cerebral é incomparavelmente mais livre. O escritor não tem de voltar ao trabalho quando soa uma sirene, o médico não tem às suas costas um supervisor vigilante, o advogado não tem seus bolsos revistados quando deixa o escritório. Porém, em compensação, o trabalhador cerebral é compelido a vender não apenas sua força de trabalho, não somente a tensão de seus músculos, mas toda sua personalidade como ser humano – não por medo e sim de modo consciencioso. Como resultado, tais pessoas não querem e não podem ver que seus uniformes de trabalho só se distinguem dos macacões dos operários pelo corte mais caprichado.

* * *

Por fim, o próprio Adler parece ficar insatisfeito com sua fórmula abstrata e essencialmente idealista sobre a relação entre a intelligentsia e o socialismo. Em seu panfleto ele se dirige, na verdade, não à categoria de trabalhadores cerebrais que ocupam funções já estabelecidas na sociedade capitalista, mas sim à nova geração dos que se preparam para assumir papéis futuros – os estudantes. Uma evidência disso surge não apenas na dedicatória “À União dos Estudantes Livres de Viena”, mas também na própria natureza de seu panfleto-palestra, com seu tom de apaixonada agitação e advertência. Seria impensável que alguém assim se expressasse diante de uma audiência de professores, escritores, advogados e médicos. Depois de algumas poucas palavras, tal discurso seria enfiado goela abaixo em nosso palestrante. Assim, dependendo diretamente do material humano com o qual dialoga, o próprio Adler impõe limites à sua tarefa. O político corrige as fórmulas do teórico. No fim das contas, é uma questão de lutar para influenciar os estudantes.

A universidade é o estágio final no sistema educacional organizado pelo Estado para os filhos das classes dirigentes e proprietárias, assim como os alojamentos nos quartéis são as instituições finais para as jovens gerações de trabalhadores e camponeses. Tais alojamentos condicionam psicologicamente hábitos de obediência e disciplina apropriados para as funções sociais subalternas que serão posteriormente exercidas. Já a universidade, em princípio, dá o treinamento para posições de gerenciamento, liderança e governo. Vistas desse ângulo, mesmo as associações estudantis alemãs são instituições de classe úteis, uma vez que criam tradições que unem pais e filhos, fortalecem a auto-estima nacional, fomentam hábitos que serão necessários no ambiente burguês e, finalmente, deixam no nariz ou na orelha algumas cicatrizes que servirão como um selo de qualidade, uma garantia de pertencimento à classe dirigente. É claro que o material humano que passa pelos quartéis é incomparavelmente mais importante para o partido de Adler, mais importante que os estudantes que frequentam as universidades. Mas em certas circunstâncias históricas – a saber, quando, com o rápido desenvolvimento industrial, o exército é proletário em sua composição social, como no caso da Alemanha – o partido pode dizer “Não vou me preocupar com os quartéis. Basta saber que o jovem trabalhador está lá na hora de entrar e basta encontrá-lo quando sair novamente. Não me deixará, continuará meu”. Mas no que diz respeito à universidade, se o partido quiser ter alguma influência sobre a intelligentsia, deve dizer exatamente o oposto: “Somente aqui e agora, quando o jovem estudante está até certo ponto livre de sua família, e quando ele ainda não se tornou um prisioneiro de sua posição na sociedade, somente agora posso atraí-lo para nossas fileiras. É agora ou nunca”.                          

Entre os trabalhadores a única diferença que existe de “pais” para “filhos” é aquela dada pela idade. Entre a intelligentsia ocorre não apenas a diferença de idade, mas também a social. O estudante, em contraste tanto em relação ao jovem trabalhador quanto em relação a seu próprio pai, não desempenha uma função social, não sente dependência direta do capital ou do Estado, não está preso a responsabilidades, e – ao menos objetivamente, se não subjetivamente – é livre para julgar o que é certo e o que é errado. Durante esse período tudo dentro dele está em constante fermentação, seus preconceitos de classe ainda são tão maleáveis quanto seus interesses ideológicos, as questões de consciência têm suma importância, sua mente está se abrindo pela primeira vez para as grandes generalizações científicas, o extraordinário é quase que uma necessidade fisiológica. Se o coletivismo tiver alguma chance de conquistar sua mente, agora é o momento, e poderá fazê-lo por meio do admirável caráter científico em que se baseia e também pela abrangência do conteúdo cultural de seus objetivos, não como uma mera questão trivial.  Neste último ponto Adler está absolutamente certo.

Mas aqui novamente somos obrigados a encarar os fatos. Não é somente a intelligentsia européia como um todo mas também a sua prole, os estudantes, que decididamente não mostram nenhuma atração pelo socialismo. Existe um muro entre o partido dos trabalhadores e a massa dos estudantes. Explicar tal realidade meramente pela incapacidade do trabalho de agitação – que não teria sido capaz de se aproximar da intelligentsia a partir do ângulo correto; que é como Adler vê essa questão – explicar tal realidade desse modo significa fechar os olhos para toda a história das relações entre os estudantes e o “povo”, significa ver nos estudantes uma categoria moral e intelectual em vez de um produto da história social. É verdade que a dependência material dos estudantes em relação à sociedade burguesa os afeta apenas indiretamente, através de suas famílias, e portanto é enfraquecida. Contudo, contra isso, as necessidades e os interesses das classes das quais são provenientes fazem com que os estudantes reproduzam a plenos pulmões os sentimentos e as opiniões de tais classes, como numa caixa de ressonância. Ao longo de toda sua história – nos mais heróicos momentos assim como nos períodos de flagrante decrepitude moral – os estudantes da Europa foram simplesmente um termômetro sensível das classes burguesas. Foram ultra-revolucionários, confraternizando sincera e honradamente com o povo, quando a sociedade burguesa não tinha outra saída a não ser a revolução. Tomaram de fato o lugar das forças democráticas burguesas quando estas, por sua nulidade política, foram incapazes de encabeçar a revolução, como aconteceu em Viena em 1848. Mas também atiraram nos trabalhadores em junho do mesmo ano, em Paris, quando a burguesia e os trabalhadores se encontravam em lados opostos das barricadas. Depois que as guerras de Bismarck uniram a Alemanha e apaziguaram as classes burguesas, o estudante alemão rapidamente se transformou naquela figura, inchada de cerveja e presunção, que juntamente com o tenente prussiano sempre aparece nos jornais satíricos. Na Áustria o estudante se transformou no porta-estandarte do extremismo nacionalista e do chauvinismo militante, isso na proporção direta em que se acirravam os conflitos entre as diferentes facções do país na disputa pelo controle do governo. E não há dúvida de que, durante todas essas transformações históricas, mesmo nas mais turbulentas, os estudantes demonstraram disposição política e prontidão para o auto-sacrifício, além do idealismo militante: todas essas qualidades em que Adler tão fortemente confia. Embora o filisteu médio de trinta ou quarenta anos não arrisque a ter sua face golpeada em defesa de quaisquer noções hipotéticas sobre “honra”, seu filho fará isso, e com fervor. Os estudantes ucranianos e poloneses da universidade Lvov recentemente nos mostraram de novo que sabem não apenas defender qualquer tendência nacional ou política até o fim, mas também são capazes de oferecer o próprio peito para os canos dos revólveres. No ano passado os estudantes alemães de Praga estavam prontos para enfrentar toda a violência da multidão, demonstrando assim nas ruas seu direito de existir como sociedade alemã. Aqui nós temos o idealismo militante – algumas vezes semelhante ao de um galo de briga – que é característica não de uma classe ou de uma idéia, mas de uma faixa etária; por outro lado, o conteúdo político desse idealismo é inteiramente determinado pelo espírito histórico das classes de onde os estudantes provêm e para as quais retornarão. E isso é natural e inevitável.

Em última análise, todas as classes proprietárias enviam seus estudantes para a universidade, e se os estudantes viessem a ser, enquanto na universidade, uma espécie de folha em branco sobre a qual o socialismo pudesse escrever sua mensagem, o que faríamos então com a herança de classe, e com o bom e velho determinismo histórico?   


* * *

Resta, por fim, esclarecer um outro aspecto da questão, que joga tanto a favor quanto contra Adler. 

O único modo de atrair a intelligentsia para o socialismo, de acordo com Adler, é trazer para a linha de frente o objetivo último do movimento, em sua total abrangência. Mas Adler reconhece, é claro, que tal objetivo último emerge mais completa e claramente na medida em que aumenta a concentração industrial, a proletarização das camadas médias e se intensificam os antagonismos de classe. Independentemente da vontade dos líderes políticos e de diferenças táticas em termos nacionais, na Alemanha o “objetivo último” surge de modo incomparavelmente mais claro e imediato do que na Áustria ou na Itália. Mas esse mesmo processo social, a intensificação da luta entre o trabalho e o capital, impede que a intelligentsia cruze o campo em direção ao partido dos que defendem os trabalhadores. As pontes entre as classes estão quebradas e, para atravessar de um lado a outro, seria necessário saltar sobre um abismo que se torna a cada dia mais profundo. Então, paralelamente às condições objetivas que tornam a essência do coletivismo cada vez mais fácil de ser compreendida – ao menos em teoria – por parte da intelligentsia, também mais e mais obstáculos sociais se colocam no caminho que faria essa mesma intelligentsia aderir politicamente ao exército socialista. Ingressar no movimento socialista de qualquer país avançado, onde exista militância organizada, não é um ato especulativo, mas sim um ato político, e aqui os imperativos e as necessidades da vida social irão prevalecer completamente sobre a razão de ordem teórica. E isso significa que é mais difícil conquistar a intelligentsia hoje do que era ontem, e amanhã será mais difícil do que é hoje.

Neste processo também ocorre, entretanto, uma “quebra gradativa”. A atitude da intelligentsia para com o socialismo, que descrevemos anteriormente como um distanciamento crescente, proporcional ao próprio aumento do movimento socialista, enfim, tal atitude pode e deve mudar decisivamente como um resultado de alterações políticas objetivas que modifiquem de modo radical o balanço das forças sociais. Dentre as afirmações de Adler esta é correta: a intelligentsia se interessa pelo fim da exploração capitalista muito indiretamente, apenas de maneira dissimulada e cheia de pré-condições, ou seja, a reboque das classes burguesas – uma vez que depende materialmente destas. A intelligentsia pode passar para o lado do coletivismo se puder ver razões suficientes que indiquem uma provável vitória imediata das causas coletivistas, se o coletivismo surgir diante de seus olhos não como um ideal de uma classe diferente, remota e distante, mas como uma realidade próxima e tangível; finalmente, se – e esta não é a condição menos importante – uma ruptura política com a burguesia não acarretar para cada trabalhador cerebral graves consequências materiais e morais. Tais condições podem ser estabelecidas para a intelligentsia da Europa somente pelo regime político de uma nova classe social; até certo ponto por um período de luta direta e imediata pelo estabelecimento desse regime. Qualquer que tenha sido o distanciamento da intelligentsia européia em relação às massas trabalhadoras – e essa distância aumentará ainda mais, especialmente nos mais jovens países capitalistas, como Áustria, Itália, os países dos Balcãs – enfim, qualquer que tenha sido esse distanciamento, a intelligentsia aproveitará, contudo, a época de grande reconstrução social para se aliar aos defensores da nova sociedade – e provavelmente vai aderir mais rápido que outras classes intermediárias. As qualidades sociais da intelligentsia desempenharão um grande papel nesse processo, qualidades estas que a distinguem da pequena burguesia industrial e comercial e do campesinato: seus vínculos com os setores culturais do trabalho social, sua capacidade para a generalização teórica, a flexibilidade e a mobilidade de seu pensamento; em suma, sua intelectualidade. Confrontada com o fato inescapável da completa transferência do aparelho social para novas mãos, a intelligentsia da Europa será capaz de convencer a si mesma de que as novas condições estabelecidas não apenas não a jogarão no abismo, mas, pelo contrário, abrirão diante dela possibilidades ilimitadas para a aplicação das forças científicas, organizacionais e técnicas; e elas serão capazes de antecipar tais forças, mesmo nos primeiros e mais críticos períodos, quando o novo regime terá de superar enormes dificuldades técnicas, sociais e políticas.
                      
Mas se a conquista real para o estabelecimento de um novo regime dependesse do ingresso prévio e antecipado da intelligentsia no partido do proletariado europeu, então as perspectivas para o coletivismo seriam verdadeiramente sombrias – porque, como tentamos demonstrar acima, a vinda da intelligentsia para a Social Democracia nos moldes do regime burguês torna-se, contrariamente às expectativas de Max Adler, a cada dia menos provável.   






Por uma Arte Revolucionária Independente

Introdução

    Em 1938, na Cidade do México, o revolucionário russo Leon Trotsky e o poeta surrealista francês André Breton redigiram, após longas discussões, o manifesto “Por uma arte revolucionária e independente”. Embora tivessem encontrado-se pela primeira vez poucos meses antes da redação do manifesto, anos antes um forte laço vinha se formando entre estas duas personagens tão importantes quanto diferentes do século XX. Quando ainda membro do Partido Comunista Francês (PCF) , no começo da década de 30, Breton e alguns outros artistas próximos a ele rejeitam a chamada “literatura proletária”, imposta pelo estalinismo, através da Associação Russa de Escritores Proletários (AREP). Neste debate, travado dentro da Associação de Escritores e Artistas Revolucionários (AEAR), utilizam argumentos próximos das teses desenvolvidas por Trotsky na obra Literatura e Revolução, escrita em 1924. Mais tarde, em 1934, assumem abertamente postura contrária à expulsão de Trotsky da França e saúdam “o organizador do Exército Vermelho que permitiu ao proletariado conservar o poder apesar do mundo capitalista coligado contra ele”, no panfleto “Planeta sem passaporte”. No ano de 1935, rompem definitivamente com o PCF, no congresso internacional de escritores em defesa da cultura. Entre 1936 e 1938, a Rússia vê, apavorada, sob as ordens de Stálin, os opositores à burocracia contra-revolucionária que assumira o controle do país serem assassinados ou deportados, naquilo que ficou conhecido como os Processos de Moscou. Quando Trotsky e Breton se encontravam pela primeira vez, em maio de 1938, os últimos sobreviventes da Oposição de Esquerda russa estavam sendo assassinados. O manifesto escrito em 25 de julho faz o chamado à construção da Federação Internacional da Arte Revolucionária e Independente (FIARI), a qual, surgida às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial, teve uma breve existência. No entanto, mesmo tendo se dissolvido ainda no início de 1939, a FIARI e seu manifesto cumpriram o papel ao qual se propunham. Da FIARI, enquanto existiu, o de aglutinar os artistas que não viam a solução para os problemas da arte nem no capitalismo, de regime fascista ou democrático, nem no autoritarismo estalinista. Do manifesto, o de ser o grito das novas gerações que buscam sua liberdade de criação, sua emancipação, rumo à revolução socialista mundial


Por uma Arte Revolucionaria Independente

André Breton e Leon Trotsky

1) Pode-se pretender sem exagero que nunca a civilização humana esteve ameaçada por tantos perigos quanto hoje. Os vândalos, com o auxílio de seus meios bárbaros, isto é, deveras precários, destruíram a civilização antiga num canto limitado da Europa. Atualmente, é toda a civilização mundial, na unidade de seu destino histórico, que vacila sob a ameaça das forças reacionárias armadas com toda a técnica moderna. Não temos somente em vista a guerra que se aproxima. Mesmo agora, em tempo de paz, a situação da ciência e da arte se tornou absolutamente intolerável.
2) Naquilo que ela conserva de individualidade em sua gênese, naquilo que aciona qualidades subjetivas para extrair um certo fato que leva a um enriquecimento objetivo, uma descoberta filosófica, sociológica, científica ou artística aparece como o fruto de um acaso precioso, quer dizer, como uma manifestação mais ou menos espontânea da necessidade. Não se poderia desprezar uma tal contribuição, tanto do ponto de vista do conhecimento geral (que tende a que a interpretação do mundo continue), quanto do ponto de vista revolucionário (que, para chegar à transformação do mundo, exige que tenhamos uma idéia exata das leis que regem seu movimento). Mais particularmente, não seria possível desinteressar-se das condições mentais nas quais essa contribuição continua a produzir-se e, para isso, zelar para que seja garantido o respeito às leis específicas a que está sujeita a criação intelectual.
3) Ora, o mundo atual nos obriga a constatar a violação cada vez mais geral dessas leis, violação à qual corresponde necessariamente um aviltamento cada vez mais patente, não somente da obra de arte, mas também da personalidade “artística”. O fascismo hitlerista, depois de ter eliminado da Alemanha todos os artistas que expressaram em alguma medida o amor pela liberdade, fosse ela apenas formal, obrigou aqueles que ainda podiam consentir em manejar uma pena ou um pincel a se tornarem os lacaios do regime e a celebrá-lo de encomenda, nos limites exteriores do pior convencionalismo. Exceto quanto à propaganda, a mesma coisa aconteceu na URSS durante o período de furiosa reação que agora atingiu seu apogeu.
4) É evidente que não nos solidarizamos por um instante sequer, seja qual for seu sucesso atual, com a palavra de ordem: “Nem fascismo nem comunismo”, que corresponde à natureza do filisteu conservador e atemorizado, que se aferra aos vestígios do passado “democrático”. A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade, mesmo que fosse apenas para libertar a. criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados atingiram no passado. Ao mesmo tempo, reconhecemos que só a revolução social pode abrir a via para uma nova cultura. Se, no entanto, rejeitamos qualquer solidariedade com a casta atualmente dirigente na URSS, é precisamente porque no nosso entender ela não representa o comunismo, mas é o seu inimigo mais pérfido e mais perigoso.
5) Sob a influência do regime totalitário da URSS e por intermédio dos organismos ditos “culturais” que ela controla nos outros países, baixou no mundo todo um profundo crepúsculo hostil à emergência de qualquer espécie de valor espiritual. Crepúsculo de abjeção e de sangue no qual, disfarçados de intelectuais e de artistas, chafurdam homens que fizeram do servilismo um trampolim, da apostasia um jogo perverso, do falso testemunho venal um hábito e da apologia do crime um prazer. A arte oficial da época estalinista reflete com uma crueldade sem exemplo na história os esforços irrisórios desses homens para enganar e mascarar seu verdadeiro papel mercenário.
6) A surda reprovação suscitada no mundo artístico por essa negação desavergonhada dos princípios aos quais a arte sempre obedeceu, e que até Estados instituídos sobre a escravidão não tiveram a audácia de contestar tão totalmente, deve dar lugar a uma condenação implacável. A oposição artística é hoje uma das forças que podem com eficácia contribuir para o descrédito e ruína dos regimes que destroem, ao mesmo tempo, o direito da classe explorada de aspirar a um mundo melhor e todo sentimento da grandeza e mesmo da dignidade humana.
7) A revolução comunista não teme a arte. Ela sabe que ao cabo das pesquisas que se podem fazer sobre a formação da vocação artística na sociedade capitalista que desmorona, a determinação dessa vocação não pode ocorrer senão como o resultado de uma colisão entre o homem e um certo número de formas sociais que lhe são adversas. Essa única conjuntura, a não ser pelo grau de consciência que resta adquirir, converte o artista em seu aliado potencial. O mecanismo de sublimação, que intervém em tal caso, e que a psicanálise pôs em evidência, tem por objeto restabelecer o equilíbrio rompido entre o “ego” coerente e os elementos recalcados. Esse restabelecimento se opera em proveito do ”ideal do ego” que ergue contra a realidade presente, insuportável, os poderes do mundo interior, do “id”, comuns a todos os homens e constantemente em via de desenvolvimento no futuro. A necessidade de emancipação do espírito só tem que seguir seu curso natural para ser levada a fundir-se e a revigorar-se nessa necessidade primordial: a necessidade de emancipação do homem.
8) Segue-se que a arte não pode consentir sem degradação em curvar-se a qualquer diretiva estrangeira e a vir docilmente preencher as funções que alguns julgam poder atribuir-lhe, para fins pragmáticos, extremamente estreitos. Melhor será confiar no dom de prefiguração que é o apanágio de todo artista autêntico, que implica um começo de resolução (virtual) das contradições mais graves de sua época e orienta o pensamento de seus contemporâneos para a urgência do estabelecimento de uma nova ordem.
9) A idéia que o jovem Marx tinha do papel do escritor exige, em nossos dias, uma retomada vigorosa. É claro que essa idéia deve abranger também, no plano artístico e científico, as diversas categorias de produtores e pesquisadores. "O escritor, diz ele, deve naturalmente ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas não deve em nenhum caso viver e escrever para ganhar dinheiro... O escritor não considera de forma alguma seus trabalhos como um meio. Eles são objetivos em si, são tão pouco um meio para si mesmo e para os outros que sacrifica, se necessário, sua própria existência à existência de seus trabalhos... A primeira condição da liberdade de imprensa consiste em não ser um ofício. Mais que nunca é oportuno agora brandir essa declaração contra aqueles que pretendem sujeitar a atividade intelectual a fins exteriores a si mesma e, desprezando todas as determinações históricas que lhe são próprias, dirigir, em função de pretensas razões de Estado, os temas da arte. A livre escolha desses temas e a não-restrição absoluta no que se refere ao campo de sua exploração constituem para o artista um bem que ele tem o direito de reivindicar como inalienável. Em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor qualquer figurino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou amanhã, para consentir que a arte seja submetida a uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com seus meios, opomos uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula: toda licença em arte.
10) Reconhecemos, é claro, ao Estado revolucionário o direito de defender-se contra a reação burguesa agressiva, mesmo quando se cobre com a bandeira da ciência ou da arte. Mas entre essas medidas impostas e temporárias de autodefesa revolucionária e a pretensão de exercer um comando sobre a criação intelectual da sociedade, há um abismo. Se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à revolução erigir um regime socialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coação, nem o menor traço de comando! As diversas associações de cientistas e os grupos coletivos de artistas que trabalharão para resolver tarefas nunca antes tão grandiosas unicamente podem surgir e desenvolver um trabalho fecundo na base de uma livre amizade criadora, sem a menor coação externa.
11) Do que ficou dito decorre claramente que ao defender a liberdade de criação, não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político e longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita “pura” que de ordinário serve aos objetivos mais do que impuros da reação. Não, nós temos um conceito muito elevado da função da arte para negar sua influência sobre o destino da sociedade. Consideramos que a tarefa suprema da arte em nossa época é participar consciente e ativamente da preparação da revolução. No entanto, o artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior.
12) Na época atual, caracterizada pela agonia do capitalismo, tanto democrático quanto fascista, o artista, sem ter sequer necessidade de dar a sua dissidência social uma forma manifesta, vê-se ameaçado da privação do direito de viver e de continuar sua obra pelo bloqueio de todos os meios de difusão. É natural que se volte então para as organizações estalinistas que lhe oferecem a possibilidade de escapar a seu isolamento. Mas sua renúncia a tudo que pode constituir sua mensagem própria e as complacências terrivelmente degradantes que essas organizações exigem dele em troca de certas vantagens materiais lhe proíbem manter-se nelas, por menos que a desmoralização seja impotente para vencer seu caráter. É necessário, desde este instante, que ele compreenda que seu lugar está além, não entre aqueles que traem a causa da revolução e ao mesmo tempo, necessariamente, a causa do homem, mas entre aqueles que dão provas de sua fidelidade inabalável aos princípios dessa revolução, entre aqueles que, por isso, permanecem como os únicos qualificados para ajudá-Ia a realizar-se e para assegurar por ela a livre expressão ulterior de todas as manifestações do gênio humano.
13) O objetivo do presente apelo é encontrar um terreno para reunir todos os defensores revolucionários da arte, para servir a revolução pelos métodos da arte e defender a própria liberdade da arte contra os usurpadores da revolução. Estamos profundamente convencidos de que o encontro nesse terreno é possível para os representantes de tendências estéticas, filosóficas e políticas razoavelmente divergentes. Os marxistas podem caminhar aqui de mãos dadas com os anarquistas, com a condição que uns e outros rompam implacavelmente com o espírito policial reacionário, quer seja representado por Josef Stálin ou por seu vassalo Garcia Oliver.
14) Milhares e milhares de pensadores e de artistas isolados, cuja voz é coberta pelo tumulto odioso dos falsificadores arregimentados, estão atualmente dispersos no mundo. Numerosas pequenas revistas locais tentam agrupar a sua volta forças jovens, que procuram vias novas e não subvenções. Toda tendência progressiva na arte é difamada pelo fascismo como uma degenerescência. Toda criação livre é declarada fascista pelos estalinistas. A arte revolucionária independente deve unir-se para a luta contra as perseguições reacionárias e proclamar bem alto seu direito à existência. Uma tal união é o objetivo da Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente (FIARI) que julgamos necessário criar.
15) Não temos absolutamente a intenção de impor cada uma das idéias contidas neste apelo, que nós mesmos consideramos apenas um primeiro passo na nova via. A todos os representantes da arte, a todos seus amigos e defensores que não podem deixar de compreender a necessidade do presente apelo, pedimos que ergam a voz imediatamente. Endereçamos o mesmo apelo a todas as publicações independentes de esquerda que estão prontas a tomar parte na criação da Federação Internacional e no exame de suas tarefas e métodos de ação.
16) Quando um primeiro contato internacional tiver sido estabelecido pela imprensa e pela correspondência, procederemos à organização de modestos congressos locais e nacionais. Na etapa seguinte deverá reunir-se um congresso mundial que consagrará oficialmente a fundação da Federação Internacional.
O que queremos:
a independência da arte - para a revolução
a revolução - para a liberação definitiva da arte.


Cidade do México, 25 de julho de 1938