História: Grupo Urdimento


Urdimento: que raios foi isso?

Cilinha Garcia

Há 30 anos nascia, entre os artistas e técnicos da área teatral de São Paulo, o movimento que culminou na retomada do Sated (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão) das mãos dos pelegos, em 1978. Foi um movimento histórico, que precisa e merece ser relembrado, porque faz parte das lutas da classe trabalhadora contra a repressão, a censura, enfim, contra a ditadura militar. No calor da luta dos trabalhadores, com os metalúrgicos à frente, os artistas encontraram um caminho para enfrentar a repressão, a censura e o cerceamento das liberdades democráticas que estavam sufocando a expressão artística, reprimindo e exilando os artistas. Foi uma participação importante porque fortaleceu a luta do conjunto dos trabalhadores contra o regime militar, contra o arrocho salarial, as demissões, as perseguições políticas, enfim, toda a situação de repressão que vivíamos nos anos 60 e 70. Foi um processo vertiginoso de lutas que naturalmente construiu um programa comum e culminou com a consciência da necessidade de se organizar. Os artistas percebiam a importância que os sindicatos combativos tinham para os trabalhadores. Voltavam os olhos para o Sated em busca de ajuda, mas ele estava controlado por uma diretoria pelega, que era, no mínimo, conivente com o regime militar. A necessidade de organizar-se para retomar o sindicato ficou clara. Daí para a formação da chapa Urdimento (na linguagem teatral, urdimento é toda a estrutura que sustenta o palco, as varas de iluminação, os caibros nos quais é pendurada a cortina, enfim, tudo o que dá apoio ao cenário) foi um pulo.
Um grupo nutrido de artistas e técnicos (atores, diretores, iluminadores, cenógrafos...), famosos ou não tão famosos, já consagrados ou iniciantes, atores de novela, de teatro e cinema, passou a se reunir no Teatro Ruth Escobar semanalmente para levar apoio às manifestações dos metalúrgicos do ABC e, ao mesmo tempo, discutir a formação de uma chapa de oposição. Uma plataforma de lutas estava nascendo, naturalmente, da dura realidade que se vivia no país de conjunto, e que atingia também a arte, os artistas, tudo o que tinha a ver com a cultura. O CCC (Comando de Caça aos Comunistas) agia impunemente, agredindo e depredando. O elenco de Roda Viva, peça de Chico Buarque encenada por Zé Celso, fora uma das vítimas da gangue fascista. O Teatro Ruth Escobar foi invadido, os atores arrancados dos camarins e espancados violentamente. A atriz Marília Pêra foi arrastada para a rua e espancada na calçada. Os artistas não podiam mais ficar calados. Era preciso reagir. Enfrentar a censura, a repressão, o clima de medo e intimidação que tomava conta de todos.
Em defesa da arte e do artista! Sem liberdade não há uma arte verdadeira! eram as grandes bandeiras do Urdimento. O nome de Lélia Abramo, atriz consagrada, foi escolhido por unanimidade para encabeçar a chapa. Depois de uma eleição conturbada, onde os pelegos tentaram de tudo para não perder o posto e, com ele, seus privilégios, a chapa Urdimento saiu vencedora. Começava aí um novo tempo para os artistas, um aprendizado sindical e político que culminou com a regulamentação da profissão,  novos enfrentamentos contra o regime e uma reflexão maior sobre o lugar da arte e do artista numa economia de mercado.

A cultura e o capital
   
Então, temos de começar por reivindicar essa participação política dos artistas, tão positiva e que tanto ajudou a derrubar a ditadura militar. O refluxo dos anos 80 e 90 fez com que o conjunto da classe trabalhadora reduzisse sua capacidade de combate; mas não pode nos fazer esquecer esse momento, nem reduzir a sua importância. Todo projeto para hoje tem de partir dessa grande vitória que foi a mobilização e a organização dos artistas e técnicos, que deram a sua contribuição para o grande processo que uniu todos os trabalhadores e que culminou com o fim do regime militar.
Muitos artistas apoiavam o PT. E depositavam nele suas ilusões. Trabalharam incansavelmente para que Lula fosse eleito. Faziam shows, angariavam fundos, divulgavam os candidatos, gratuitamente, nos programas de TV. O PT se tornou governo, a CUT virou uma central sindical oficialista e, apesar do fim da censura, nada mudou de concreto nas condições de produção artística no país.
A censura política deu lugar a um outro tipo de proibição: a econômica. O problema maior passou a ser o trabalho, o emprego, a falta de apoio estatal às artes. Os artistas se vêem agora envolvidos em uma humilhante disputa pelas migalhas que as leis de incentivo destinam aos projetos. E como um dos requisitos para conquistar essas migalhas é formar uma empresa, houve uma vaga de “empresariamento” geral na área da cultura, artistas fazendo cursos para formação de empresas, estudando as leis de incentivo, especializando-se na formatação de projetos para disputar as parcas verbas oficiais (estatais ou privadas) oferecidas. O “financismo” invadiu a arte, e não no sentido da economia, das leis econômicas, da situação econômica do país, conhecimentos mais do que necessários aos artistas, mas no sentido da administração de empresas, área super-específica e que foge completamente dos propósitos da arte. Foi isso o que impulsionou a formação da Cooperativa Paulista de Teatro, como forma de facilitar essa administração dos “negócios da cultura”. E em contrapartida esvaziou o sindicato como organismo de classe dos trabalhadores da arte, agora transformados em mini-capitalistas.
Essa relação entre cultura e capital, sempre muito conflitiva, hoje domina o mundo dos artistas. As regras do capitalismo, dos negócios, das leis e decretos para se obter verba, o trânsito nos corredores dos palácios e nas salas das diretorias das grandes empresas: conquistar esse reino, doravante, passou a ser a máxima ambição de muitos artistas.

Registro de artista: outra conquista deformada

Outra grande conquista dos artistas e do Urdimento foi o registro de artista nos anos 70. Inicialmente reivindicada como forma de valorizar a profissão, bem como de sua defesa diante das investidas patronais e da falta de cumprimento dos direitos trabalhistas, a regulamentação da profissão hoje é mais uma pedra no caminho do artista.
A Lei 6.533, de 24 de maio de 1978, regulamentou a profissão dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão. Ela foi inicialmente pensada como um instrumento de luta e defesa dos trabalhadores. No entanto, a lógica do capitalismo e da sociedade burguesa mais uma vez prevaleceu. Aplicada por um governo burguês, a serviço do capital, como todos os governos pós-78 até hoje, e estando nas mãos de uma diretoria sindical burocrática e alheia aos interesses dos trabalhadores, como é a atual diretoria do Sated, essa lei se transformou, na prática, em um instrumento contra os artistas.
A diretoria do Sated tem uma visão burocrática da lei que, ao invés de ser usada para fazer fluir o surgimento de novos artistas, para incentivar o trabalho e o despertar do talento artístico, funciona como freio. O postulante deve cumprir uma série tão grande de requisitos, muitos dos quais totalmente inúteis, e ultrapassar tantos obstáculos, que a maioria fica pelo meio do caminho. Além de ter de pagar caro pelo registro, verba essa que vai para os cofres do Sindicato, sem que se reverta em benefícios para os artistas e técnicos.
A obtenção do registro é condição para que o artista e o técnico encontrem trabalho e recebam verbas oficiais. Enfim, todos devem passar por esse calvário, um calvário imposto pelo próprio sindicato da categoria.
É urgente, portanto, que os artistas e técnicos voltem a debater essa lei, no sentido de transformá-la ou mesmo derrubá-la, e lutar por uma nova regulamentação da profissão, que esteja de acordo com seus interesses e em consonância com os novos tempos, já que 32 anos se passaram desde a implantação da lei, e muita coisa mudou no Brasil e no mundo.

Conclusão?

Temos de aprender com o processo histórico. E refletir. A deformação de todas essas conquistas – a invasão do capital na arte, a burocratização do Sated, o calvário da regulamentação da profissão – só nos mostra que foram conquistas importantes em seu momento, mas igualmente parciais e fugazes. Enquanto vivermos sob o capitalismo, um regime de mercado, onde a arte tem de disputar espaço num terreno que não é o seu, e onde o que prevalece é a exploração e a opressão, todas as nossas conquistas, por mais importantes que sejam, estarão ameaçadas. Enquanto for a burguesia a governar e gerir nossas riquezas - e não a classe trabalhadora - toda conquista que nos beneficie será passageira e, mais cedo ou mais tarde, se voltará contra nós.  
Então, devemos cruzar os braços? Pelo contrário. Devemos lutar cada vez mais, mas conscientes de que nossa luta não pode se limitar às pequenas reformas, e de que não podemos confiar nos políticos burgueses, no governo, nos empresários, nos bancos, enfim, naqueles que hoje dirigem o país.
Se não refletimos sobre o passado, não podemos construir o presente. Por isso, a melhor forma de comemorar os 30 anos do Urdimento e da retomada do Sindicato é fazer essa reflexão. É voltar a reunir a categoria, agora sob novas bases e com essa experiência acumulada, para que ela retome sua combatividade e espírito de militância por uma sociedade diferente, onde a arte seja verdadeira e livre das imposições do capital, onde os artistas e técnicos sejam valorizados, onde todos possam dar asas à sua criatividade artística, onde não haja separação entre trabalho manual e intelectual, enfim, um mundo melhor, sem explorados nem oprimidos, onde nossas conquistas sejam, finalmente, firmes e duradouras.